domingo, 31 de dezembro de 2017

Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende

1° edição, Editora Alfaguara, 2016
  O romance Outros cantos, de Maria Valéria Rezende é uma narrativa realizada em primeira pessoa onde a protagonista delineia uma série de reminiscências na qual predominam sua estadia num povoado do sertão nordestino chamado Olho D’água. Trata-se de uma leitura muito fluida, pois é narrado com uma simplicidade e coerência, embora vez por outra o leitor esbarre em algum vocábulo peculiar, pertencente ao dialeto regional do lugar rememorado.
   O sugestivo título Outros cantos alude aos diversos lugares que a protagonista Maria visitara, sempre em prol de missões humanitárias, sobretudo a de educadora, função que a levou a Olho D’água, lecionar para o antigo Mobral, hoje EJA. Passado quarenta anos, Maria retorna ao sertão e durante o trajeto num ônibus põe - se a relembrar das agruras que passou ao pisar numa terra castigada pela seca e povoada por pessoas tão humildes e ignorantes, mas que a receberam de coração aberto. Se eram ignorantes, sua missão ali faria todo o sentido. Será? Por mais que a predominância seja uma ligação afetiva, criada a partir da empatia da protagonista para com as carências do povo de Olho D’água, sobretudo a sertaneja Fátima e seus filhos, a narrativa não deixa o debate político de lado uma vez que Maria tenta incutir na população um pensamento crítico, ou seja, induz o povo a pensar na política daquela localidade, em plena época do regime ditatorial.
   Pode-se categorizar como um livro de memórias, pois é notório o forte saudosismo impresso na narrativa, sobretudo quando Maria compara o sertão de hoje, avistado da janela do ônibus de modo preciso, com o sertão de outrora que trouxe à protagonista tantas descobertas. As lembranças de Maria são compostas pelo trabalho árduo das pessoas do povoado; pelo aboio dos vaqueiros; pelas histórias contadas pelo povo, algumas em forma de repente; pelas festividades religiosas, entre tantos aspectos comuns àquela região. Tudo rememorado de maneira que Maria, ao contrário dos outros passageiros, não se sente ansiosa para chegar ao destino,pois um forte saudosismo daquele primeiro sertão, tão característico em sua aridez, toma conta de sua mente e ela percebe que aquele lugar, devido a algum progresso, já não é mais o de outrora. Talvez por conhecer de perto a vida em lugares semelhantes ao retratado em Outros Cantos minha leitura foi rápida, não precisei do dicionário em nenhum momento, o que não se pode negar que o leitor nascido numa metrópole não recorra a ele. Todavia as passagens no presente, em que a narradora tece críticas ao nosso tempo, seja da rapidez imposta a todos nós: “Não é só o fast–food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave!” (p. 72) corresponde ao que mais achei interessante nessa narrativa, pois denota uma lucidez e autenticidade que só uma pessoa autêntica e criativa possibilita na composição de uma literatura cativante e rica em memórias. É possível uma comparação com Vidas Secas, do Graciliano Ramos, sobretudo na linguagem de ambos, direta sem adornos, apenas tecendo o fio das memórias, que como sabemos, é fotográfica.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Como nossos pais

imagem da cena inicial do filme de Laís Bodanzki
  Como nossos pais é um filme dramático que aborda a difícil situação de uma mulher ao tentar conciliar os vários papeis impostos a ela nos nossos dias. Ser mãe, lidar com os percalços do casamento, abrir mãos dos sonhos profissionais para poder viver do que é possível no presente, ou seja, trabalhar num ramo apenas pelo dinheiro, entre tantos outros desafios é uma tarefa hercúlea.  Some-se a esses fatores uma notícia bombástica acerca de sua paternidade proferida por sua mãe num pleno almoço de domingo! Eis a cena inicial desse drama que já incute no telespectador a vontade de conferir o desenrolar dessa narrativa cinematográfica.
  Com atuações convincentes de Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra, mãe e filha nesse longa dirigido por Laís Bodanzky, esse filme abarca uma gama de conflitos de modo bem articulado na narrativa. Não basta Rosa lidar com o fato de sua mãe ter escondido a verdade de sua paternidade por várias décadas, o homem a quem ela o considera seu pai não passa de um fracassado artista a se aproveitar das mulheres por ele conquistadas; a empresa em que Rosa trabalha a demite após uma “cagada” das grandes  onde numa importante reunião ela, atabalhoadamente, apresenta um arquivo contendo uma peça de teatro ao invés do projeto empresarial sobre utensílios de banheiros. Para entornar ainda mais o caldeirão de infortúnios de Rosa, ela desconfia que seu apático marido tem uma amante! Mas não para por ai...
   Este filme tem vários méritos, um deles é a pincelada de humor que vez por outra salta nas frestas desse convincente drama. Nesse núcleo pertencem o pai (artista fracassado) de Rosa e sua meia-irmã, uma adolescente com os hormônios fervilhando em rebeldia – com a cara do século XVI- claro! Além das falas do roteiro serem bem inteligentes. Por exemplo, quando Rosa conta estorinhas para as filhas elas pedem para ouvir a história da Eva, ao menos esse incauto espectador sequer atinou que seria nada menos que a narrativa bíblica e, pra variar, a passagem em que Deus determina um castigo à mulher após ela e Adão terem cometido o pecado. Ao enveredar por esse lado- a mulher sempre oprimida- o longa corre o risco de ser taxado como obra de cunho político feminista, mas isso é apenas um dos modos de categorizar o cinema contemporâneo. O importante é que Como nossos pais não é “dramalhão barato-forçado”, muito menos, mero entretenimento, mas um filme muito bem realizado que não comete firulas visuais, mas foca no roteiro e nas boas atuações do elenco.

  Não bastasse os acertos do filme de Laís Bodanzki já citados, o mesmo ainda traz uma canção da Céu, uma das artistas mais originais da safra de novas cantoras, na trilha sonora. Em suma, é daqueles filmes que prendem a atenção pelo realismo das cenas, sobretudo aquelas que retratam o cotidiano mais banal, por exemplo, nas birras da filha de Rosa, beirando a pré-adolescência. Um teste de paciência que faz qualquer mãe contar até três, respirar fundo pra não perder a linha, mas o instinto materno fala mais alto mesmo, enfim, o máximo que ocorre é Rosa esquecer o leite no fogão. Ops, outro spoiller. Sorry, nada que estrague a experiência de um filme que incute inúmeras reflexões acerca da maternidade, do direito da mulher em ser tão livre quanto o homem e de amor em seu sentido amplo. Nada mal, cinema nacional.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A ousadia de Clarice

1° edição, Artenova,1974
  A Via Crucis do Corpo é um pequeno volume de contos escritos por Clarice Lispector em 1974. Desnecessário falar que essa obra praticamente fica nas sombras dos aclamados trabalhos da autora, como a novela A hora da estrela ou os romances A paixão segundo G. H. e Perto do coração selvagem. Mesmo no ambiente acadêmico, onde as pesquisas sobre a obra de Lispector são abundantes, são raros os que se detém sobre A via crucis do corpo. Por qual motivo esse livro é considerado obra menor? Não haveria neste o mesmo elemento criativo presente nos livros consagrados?
  O fato é que o livro foi muito mal recebido quando da época do seu lançamento, 1974, alguns críticos taxaram a obra de lixo e que seria melhor não ter sido lançada. A professora Vilma Âreas, argumenta que a ousadia do livro, sobretudo por apresentar personagens pouco convencionais, como senhoras sexagenárias (octogenárias também) com desejos sexuais, prostitutas e travestis disputando o mesmo homem, moças recatadas seduzidas por extraterrestres e até uma paródia do texto bíblico da Anunciação, entre outros, foi um dos fatores que gerou o desprezo por essa obra. Inclusive a própria autora, relata um desprezo no texto Explicação: “Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo.” (P.12). Todavia, como Clarice Lispector é uma escritora intuitiva - os romances comprovam isso - é fácil compreender que uma obra sob encomenda como é o caso de A via crucis do corpo, acaba por tolher a sua liberdade criativa. Na melhor das hipóteses testa os seus limites, uma vez que a própria argumenta que “tratava-se de um desafio”.

  Além dos contos polêmicos, que são cheios  de humor, essa coletânea apresenta quatro crônicas que relatam o processo escritural dos conto de A via crucis, ou seja, a autora permite-se a uma proximidade com o seu leitor, até então desconhecida do público que a imaginavam uma pessoa tão misteriosa quanto a esfinge. Essa aura de mistério em torno de Clarice é oriunda de seus profundos textos como A paixão segundo G.H. , romance denso que jamais se esgotaria numa só leitura. Em contrapartida, o volume A via crucis do corpo é escrito numa linguagem simples, apesar que é uma obra repleta de referências que vão de elementos do cinema ao texto bíblico, ou seja, o simbolismo acompanha Clarice até mesmo em seus trabalhos menos rebuscados. Vale ressaltar, que é necessário ler A via crucis do corpo, atendo-se que é um trabalho meramente ficcional, onde a autora concatena suas ideias com a finalidade de tecer uma imitação da vida. Nessa imitação da vida, há espaço pra muita fantasia. Contrariando aquela música popular do nosso tempo, em A via crucis do corpo há espaço para ousadia e tristeza. Mas eu dissera que há muito humor nos textos... bem, leiam esse livro de Clarice.

sábado, 2 de dezembro de 2017

O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe

2°edição, Editora Globo,2016
   



   Durante as aulas de literatura do curso de letras, a professora sempre salientava que a literatura era fundamental porque humaniza, incomoda, ou seja, nos desperta para uma verdade camuflada pelo automatismo do nosso cotidiano. Todavia, não são todos os textos literários que possuem tal capacidade de transcender nosso estado de espírito, essa é uma qualidade que só as boas obras possuem. Aquelas em que as palavras não apenas contam algo, mas nos tocam pela construção poética das frases ou períodos. Existem aquelas obras que nos acompanham por toda a vida, que volta e meia teremos a vontade de reler, não por alguma complexidade linguística, mas porque a delicadeza, o lirismo está presente em cada capítulo da narrativa.
    Uma obra que veio a se tornar um achado literário, não só para esse simplório leitor, é O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, um romance que abarca inúmeros elementos de maneira  assertivamente construída. Valter Hugo Mãe tece com maestria seu enredo, inicialmente, devido à concisão dos capítulos, cada um apresentando um personagem central: o Crisóstomo; a anã; o Camilo, entre outros a seguir, remete-nos ao formato do conto, entretanto, trata-se da apresentação dos personagens em seus núcleos, para que no decorrer da narrativa vejamos a construção dos laços afetivos em que se atarão alguns desses personagens. Como o título da obra sugere, O filho de mil homens, ou seja, a temática do parentesco não se resume ao fator sanguíneo,mas é elevada  a um alto grau do sentimento de amor, de cuidado para com as pessoas que por alguma razão se cruzaram nessa estória. Por esse motivo, o Crisóstomo, homem de quarenta anos, sozinho no mundo que “Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos” (p. 19)sente-se enormemente realizado ao adotar o órfão Camilo. Além do fato de que as personagens desse livro habitavam um vilarejo litorâneo, ou seja, eram pessoas simples que viviam felizes com o que lhes era possível de realização.
  Conforme afirmei ser essa obra uma narrativa completa, ratifico apontando alguns elementos, pois temos a poesia, o lirismo, sobretudo personificado em Crisóstomo que adota Camilo e enamora-se pela rústica Isaura; O humor também aparece no tratamento das mulheres da vila com a personagem anã, na verdade aquele humor que esconde sentimentos nada virtuosos, há exemplo das mulheres que não aceitavam o fato de que anã era capaz de ser feliz apesar de sua diminuta condição. Consta na narrativa também, uma espécie de realismo mágico como no capítulo do velho que tinha uma galinha gigante, “uma avestruz” como deduz a criança filha de Rosinha, criada respondona, cujo velho, um dos raros personagens com posses, pretende passar com ela o resto dos seus dias. Outro aspecto importante nessa obra, é o humanismo, sobretudo na figura do personagem homossexual: o Antonino, cuja mãe vive a duelar mentalmente seus sentimentos para com o filho. O trunfo nesse núcleo é que o autor não recorre ao lugar-comum, que seria apresentar um discurso limitado, redutivo, mas assertivamente toca no cerne da questão, ou seja, apresenta um personagem vítima de inúmeras suposições sem fundamentos. Doravante os moradores da vila teciam comentários maldosos calcados em seus próprios preconceitos, sequer tinham vistos o Antonino a cometer atitudes comprometedoras. A parte em que Antonino põe uma maquiagem na sofrida e apagada Isaura, fazendo-a renascer,é quase uma epifania, apesar de que essa, a epifania aparece em inúmeras passagens do livro.
   Certamente, os personagens do Crisóstomo e do Antonino são os mais cativantes, ambos são dotados de um genuíno sentimento de amor ao próximo, cada qual ao seu modo , já que “amar uma pessoa é o destino do mundo”, conforme aparece numa passagem dessa obra belíssima que é O filho de mil homens. Nos momentos de tristeza, sobretudo do Crisóstomo, ele caia para dentro de si, caia e levava também o leitor, completamente caído de amores pela prosa poética de Valter Hugo Mãe, uma prosa que aborda o reencontro da alegria de viver em companhia daqueles que amamos. Os personagens viviam a sonhar com o amor: Crisóstomo queria um filho; Isaura um marido; Antonino a aceitação de todos, começando por sua própria mãe, ao final todos conquistaram isso e muito mais. Fica a dica de um ótimo presente de natal, O filho de mil homens é uma leitura fácil, porém cheia de encanto e criatividade, qualidades tão peculiares em Valter Hugo Mãe.



domingo, 19 de novembro de 2017

Intérprete de Males, de Jhumpa Lahiri

Editora Globo, 2014
   Intérprete de Males é a primeira obra literária da escritora Jhumpa Lahiri. O livro de contos foi o vencedor do importante prêmio Pulitzer e aborda, entre vários fatores, a condição dos imigrantes indianos nos Estados Unidos. A adaptação aos costumes americanos, a saudade da família que ficou na Índia e principalmente o choque cultural dão a tônica de grande parte dos contos dessa coletânea. Os personagens retratados, em sua maioria, são casais indianos que moram nos EUA, crianças nascidas nos EUA filhos de pais indianos, ou ainda filhos de americanos que de alguma forma convivem com indianos, sendo que alguns contos são narrados sob a perspectiva do olhar infantil, como os textos  “Quando o senhor Pirzada vinha jantar” e “A senhora Sen”.
   Os textos citados acima são narrados de maneira simples, a escrita de Jhumpa não dispõe de maneirismos estilísticos ou algum recurso que traga complexidade na linguagem, ela apenas descreve as vivências das personagens de modo sutil, injetando certa dose de surpresa à medida que elas constroem sua visão de mundo mediante a observação das pessoas com a qual convivem. É o que acontece no referido “A senhora Sen”, onde acompanhamos um menino, de família americana, que passa o dia sob os cuidados de uma babá indiana, esta, a Senhora Sen. Essa convivência permite à criança aprender sobre a cultura indiana, uma vez que sua babá vive como se ainda habitasse seu país de origem, ou seja, da cozinha à indumentária e até mesmo sua pronúncia do inglês, tudo na senhora Sen evocava a Índia e seus sabores, suas cores, etc. Mas, a verdade, é que a senhora Sen sofria deveras com a saudade dos parentes que ficaram no Oriente, doravante, uma carta que chegava da índia era motivo de grande alegria, em contrapartida, saber que só poderia ver um sobrinho que nascera quando ele tivesse três anos não era nada auspicioso para ela. É um dos textos mais tocantes e expõe uma inversão de papéis, pois Eliot, o menino sob os cuidados da senhora Sen, acaba sendo um alento para sua babá, uma vez que ela tem para quem falar de sua terra e do que sente falta de lá, ou seja, quase tudo. Além do fato de que ela ainda não sabia dirigir, e recebia uma certa pressão do senhor Sen, para que perdesse o medo e conseguisse tirar a habilitação, afinal, eles moravam nos EUA, era primordial que ela soubesse dirigir. Vejamos um excerto: 
  - Como espera passar no exame se você se recusa a dirigir na rua com os outros carros?
  - Eliot está aqui hoje.
  - Ele está aqui todo dia. É para o seu próprio bem. Eliot, diga para a senhora Sen que é para o próprio bem dela.
   Ela se recusou. (p. 133-134)
   Daria para falar sobre cada um dos nove contos desse livro, pois cada um é, a sua maneira, um primor literário! Jhumpa lahiri é mestra em traçar esse encontro de culturas diferentes; de gerações diferentes, como percebemos nos textos narrados sob uma ótica infantil, mas com um aguçado senso de apuração do que se passa ao redor. Vale ressaltar que o conto que intitula a coletânea é um dos mais interessantes, pois é daqueles textos onde, sutilmente, uma verdade vem à tona, revelando coisas improváveis, passeando por devaneios que só uma mente sempre ligada (do narrador) expõe. O intérprete de males é na verdade uma espécie de tradutor, trabalhando num hospital onde aparecem pacientes portando um dialeto que o médico não entende, então, cabe ao senhor kapasi traduzir, isto é, relatar ao médico os “males” que acometem estes pacientes. Todavia, é no seu outro emprego onde ele é guia turístico, conduzindo uma família americana aos pontos turísticos indianos, que uma mulher, com marido e três filhos, desperta para outras sensações diante de um trabalho, em sua própria expressão: “romântico”. Resumindo, no passeio turístico está o pai entretido a fotografar; as crianças distraídas com os animais e há a senhora Das com expressão de enfado, mas quando o guia conta que traduz os males dos outros ela subitamente julga ter encontrado a pessoa certa pra contar um grave segredo. E o que se sucede? Pois não disse que Jhumpa constrói narrativas interessantíssimas? Uma verdadeira viagem pelos labirintos da mente humana e seus devaneios e segredos. Como será esse embate entre o guia e a senhora Das? haverá reciprocidade? Leiam o incrível Intérprete de males. 


terça-feira, 31 de outubro de 2017

O teatro de Roberto Muniz Dias

Editora Metanoia
Páginas: 202
Ano: 2017


Experientia (O teatro de Roberto Muniz Dias)

             “Quando é que a saudade daquilo que a gente não viveu passa?”
                                                                                               Tulipa Ruiz

              “Escrever é organizar os sentimentos perdidos.”
                                                                                       Marcelino Freire

   Com uma produção crescente que só ratifica o talento com as palavras, Roberto Muniz Dias entrega o volume Experientia, coletânea composta por cinco peças teatrais. São elas: As divinas mãos de Adam; Raroquerer haraquiri; A volta do cometa; Bonecxs desalmadxs e Uma cama quebrada. Para efeito de síntese, comentarei sobre as duas primeiras, o que não significa que as demais não sejam dignas de análise, ao contrário, em cada uma nota-se o cuidado e afinco para com os elementos a serem retratados. Da descrição do cenário à criação da personagem, em todos os aspectos é notável o trabalho de concatenação empreendido, seja pela linguagem sofisticada, que jamais sucumbe a termos abjetos, ou pela tramitação entre a técnica tradicional e outros  métodos mais  ousados, repletos de subjetivismo, idiossincrasias.
   A peça As divinas mãos de Adam - que já foi encenada em São Paulo e Rio de janeiro – aborda, entre outros aspectos, a impotência que aniquila um indivíduo, restrito a imobilidade numa cama, vegetando. Não há relatos do que provocou a perda dos movimentos de Stephen, apenas sua atual situação, além da cegueira. Numa tentativa de resgatar o que sobrou de sua natureza, Stephen põe um anúncio de jornal à procura de alguém que lhe preste serviços de masturbação, “ambos os sexos”. Bate-lhe à porta o jovem imigrante Adam, munido pela necessidade e o medo do desconhecido: “Mas... (com espanto) não devo usar luvas? (Dúvida atordoante)” (p. 11) Percebe-se, pelo livro o quanto o texto fora criado especialmente para fins de encenação, ou seja, a sonoplastia, a feição da personagem que  antecede ao leitor o momento da fala, praticamente joga o leitor para o teatro. Ou antes confirma o forte teor imagético da literatura de Muniz Dias. Talvez a experiência como romancista explique a maneira como gradativamente, Muniz Dias conduz os diálogos em As divinas mãos de Adam, ou seja, tudo vai aos poucos se revelando, os personagens se dando a conhecer com uma intensidade à flor da pele que revela as agonias que permeiam suas vidas. Os personagens, ao dividirem suas experiências, procuram resgatar as poucas alegrias que algum dia tiveram, o que traz beleza ao texto. Outro fator que torna bela essa estória (triste, assim como as melhores estórias) é a construção da empatia entre duas personagens tão distintas, mas que possuem a mesma abertura para mergulhar na busca do real e se desprender de qualquer amarra ideológica. A juventude e inexperiência de Adam não o impede de acolher os sentimentos que emanam de Stephen. Certamente, As divinas mãos de Adam é um dos mais belos trabalhos do escritor piauiense. E como filosofia pouca é bobagem, o inteligente diálogo entre Stephen e Adam é confrontado com a chegada de Rita, irmã daquele, doravante a peça atinge o clímax e caminha para um sublime final.
  Já a segunda peça do volume Experientia, “Raroquerer haraquiri”, é um monólogo inspirado no romance A teia de Germano, um texto predominantemente metalinguístico. Carregado de metáforas que ora recorrem a referências culturais japonesas, ora a problematização da literatura. Como produzir o melhor texto? Buscando o ideal de uma infância desejada? Esperando que o seu amor também compartilhe o amor para com os livros, ou seja, tenha afinidade? É um texto que fala, especialmente, a propensos escritores ou aos apreciadores das artes, enfim, aos sensíveis. Não esqueçamos que Muniz Dias tem a mesma formação de Clarice Lispector e de Caio Fernando Abreu, ou seja, não apenas esse fator os coloca num mesmo patamar, as obsessões literárias são as mesmas. O mesmo mergulho no insondável, a verve filosófica, as personagens inaptas à realidade, entre outros aspectos, colocam Muniz Dias trilhando corajosamente esse árduo caminho. É a sua via crucis, só para lembrar alguma passagem clariceana em sua visceral obra.
  Contando com uma cena única, Raroquerer haraquiri mergulha fundo no sentimento universal que é a angústia, uma vez que o personagem é um escritor, ou seja, categoria possuidora de um múltiplo universo de ideias e sempre a trabalhar a melhor maneira de narrar poeticamente tais ideias ou vivências para enfim, compartilhar com os possíveis leitores. O interessante nesse monólogo, é que apesar do personagem chegar às raias do desespero, indagando sobre as incertezas do seu futuro como escritor, ele consegue criar um texto nos moldes do que é  considerado um conto tradicional. Trazendo referências clássicas, extraindo uma fantasia da infância “que os anos não trazem mais” e evocando um belo final epifânico para sua short storie de cunho infanto-juvenil. Assim como As divinas mãos de Adam, essa peça também tematiza os impasses que a busca de uma saudosa lembrança implica. Seja ao resgatar um hábito de um ente querido (falecido) ou em guardar objetos que testemunhem algo vivido de bom, nota-se que em ambos os textos as personagens, embora de modo implícito, retomam os conceitos de Santo Agostinho acerca da ultrapassagem do tempo presente, ou seja, as tentativas de resgatar as memórias mais revelam a impossibilidade do presente, que restauram  o sentimento de outrora.



domingo, 17 de setembro de 2017

Feira das vaidades

A atriz americana Reese Witherspoon em brilhante atuação
  É comum ouvirmos dizer, muitas vezes, que as adaptações cinematográficas de obras literárias sempre ficam aquém da original, Há exceções, é claro. Há também, geralmente, casos em que nem sabemos que o filme do qual gostamos tanto fora adaptado de um romance clássico. Nesse caso nos sentimos tentado a conhecer a obra que serviu de base para a “nova versão”, mesmo que a obra em questão seja um calhamaço de mais de oitocentas páginas.  Essa é minha experiência com “Feira das vaidades” filme estrelado por Reese Witherspoon, adaptado do livro de William Makepeace Thackeray, que mal posso esperar pra ler!
  Enquanto não disponho do livro, vamos a algumas impressões sobre o filme: A protagonista é Rebeca Sharp (Reese) uma jovem orfã que desde criança sonhava em pertencer à alta sociedade de Londres, fazendo de tudo para ser aceita pelas pessoas pertencentes a essa esfera social. Sua determinação e ousadia faz contraponto ao comportamento de sua única amiga Amelia, que é a personificação da inocência e do romantismo. Ao torcer para que Amelia tenha um feliz matrimônio, Rebeca é, a princípio, hostilizada por George Osbourne, noivo de Amélia. George é exatamente um poço de vaidade e arrogância, o que na verdade encobre a sua fraqueza no quesito de homem/soldado prestes a lutar pelo seu país na iminente guerra de Waterloo. Antes desse combate, o cinismo de George em relação à Rebeca cai por terra, quando ele percebe que a ausência de berço daquela não a impediu de ser uma mulher culta e com atitudes dignas das pessoas do high society londrino, fato que o faz cortejá-la num baile, ao passo que Amelia,grávida, fica aos cuidados de um amigo que ,na verdade, é apaixonado por ela.

  Uma das ideias que o filme reforça constantemente vem ao encontro do dito popular “sorte no amor, azar no jogo”, numa cena próxima ao clímax dessa estória, um Lord diz à Beck que o seu pai tinha um excelente talento para as artes, mas nenhum para a vida, o qual ela responde que sua missão é mudar isso. Em verdade o Lord em questão é uma das personagens centrais de Feira das vaidades, aparecendo, inclusive, já na primeira cena, despontando à visão de Beck pelo meio do filme e na segunda metade conduzindo ao clímax, quando descortina toda a opulência da sua classe que Beck tanto admira. Esse descortinar significa revelar toda a hipocrisia e mediocridade que reina, inclusive, na figura das damas inglesas que desprezam Beck e se sentem obrigadas a engolir a presença desta porque os cavalheiros rendem-se a sua beleza e autenticidade.Na verdade, Lord Stern encurrala a própria Beck ao relembrar que ela vendera-lhe, em criança, um retrato de sua mãe. Por um alto preço, porém vendera.  Vale ressaltar que Reese Withespoon está deslumbrante aqui. Recomendo este filme,o que escrevi aqui é só um pequeno recorte, pois Feira das vaidades tem belas imagens, belas canções e a história é muito rica,mas se tiverem oportunidade, leiam o livro também.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A envolvente literatura de Chimamanda Ngozi Adichie

Edição da Companhia das letras, 2017
   A literatura de Chimamanda Ngozi Adichie é muito acessível, tanto pela temática, quanto pela simplicidade de sua linguagem, o que não significa que seus textos não mereçam ser agraciados por importantes prêmios literários ou não ter o grande alcance de público leitor. Em “No seu pescoço”, Chimamanda se revela uma contista de mão cheia, pois em alguns textos é evidente a fabulação bem estruturada desse gênero, ou seja, uma estória redonda, na qual a autora se concentra numa situação específica, num cenário designado e com poucas personagens, aspectos que podemos observar no conto “Uma experiência privada”, que aborda a convivência insólita de duas mulheres escondidas num armazém, uma vez que ocorria uma rebelião nas ruas. Estas mulheres, possuíam muitas diferenças culturais: a protagonista era nigeriana, a outra, muçulmana e tais diferenças, não impediram-nas de criar laços de empatia frente ao desalento e temor por qual passavam, mas antes fortaleceram a humanidade entre elas. Outro aspecto reportado nesse conto é a oralidade, sobretudo na fala da muçulmana, aliás, em outros textos dessa coletânea, as personagens vivem às voltas atentas as entonações e expressões proferidas pelos interlocutores, fato que comprova que Chimamanda trabalha a linguagem e não apenas relata as diferenças culturais, sobretudo a dicotomia Nigéria versos EUA, pois há o risco de ficarmos com a primeira impressão que ela nos passa. E isso, Chimamanda não merece, por isso ela nos disse que o ruim dos estereótipos, é que eles são limitados, nos dão apenas um lado da história.
   Os contos que relatam as personagens nigerianas descobrindo como é viver nos EUA, são cheios de humor, Chimamanda descreve com sutileza, ou uma fina ironia as características reprováveis dos americanos, embora não teça memórias ufanistas da Nigéria, seu país de origem. O fato é que o leitor certamente irá recordar as vezes que pisou em lugares estrangeiros ou mesmo se deslocou da roça para viver numa metrópole  e esteve perdido por não saber os modos de comportamento no novo recinto. Um conto que descreve bem essa situação é “Os casamenteiros”, no qual a protagonista nigeriana se casa com um conterrâneo que mora nos EUA há bastante tempo e este responsabiliza-se por introduzir Chinaza, a personagem principal, ao estilo de vida americano. Como ele faz isso? Interpelando Chinaza todas as vezes que ela utiliza expressões de sua terra, pois ela tinha que ser o mais americanizada possível! Há até mesmo uma passagem bem brasileira, principalmente se você, leitor, for do povão e pegue ônibus lotado:
“No ônibus com ar condicionado, ele me mostrou onde colocar as moedas, como apertar o botão na parede para avisar que eu queria descer.”
“Aqui não é que nem na Nigéria, onde a gente grita para o motorista”, disse com desdém, como se tivesse inventado pessoalmente o superior sistema americano.” (p. 187)
Ainda sobre esse conto, a protagonista refere-se a seu par designando -o “meu novo marido”, como a dizer o quanto seu cônjuge aderiu totalmente ao modo de viver dos americanos, ou seja, era outra pessoa, impedindo-a de utilizar expressões de sua terra e sugerindo que ela começasse a se portar como uma americana também:
“Você não entende como as coisas funcionam nesse país. Se você quiser chegar a algum lugar, tem que ser o mais normal possível. Se não for, vai ser largada na beira da estrada. Tem que usar seu nome inglês aqui.” (p. 186)
Os contos de No seu pescoço são um deleite para nós leitores e certamente nos incute a vontade de conhecer mais sobre a obra de Chimamanda Ngozi Adichie. Até a cantora Beyonce já pegou carona no sucesso da escritora, na canção Flawless, Chimamanda discursa em prol do feminismo. Ouvimos e  leiamos Chimamanda, então!


domingo, 20 de agosto de 2017

Sobre Caio Fernando Abreu

Edição da L&PM, 2012
   O jovem pretensioso mais conhecido como “menino do Acre”, disse em entrevista ao Fantástico, da rede Globo, que as pessoas deviam buscar o “mistério”, seja lá o que raios ele entende por isso e nem estou disposto a ler seu livro para entender. Recordo-me, que nada me aproxima mais  do mistério, que as incansáveis aflições descritas em obras de Clarice Lispector ou de Caio Fernando Abreu, este, totalmente influenciado pela canonizada ucraniana. Certamente Caio adequa-se a categoria formulada por Ezra Pound de escritores que conseguem tornar um estilo de escrita ainda mais consistente, não que “consistente” seja a palavra designada por Ezra, mas a ideia era essa. Os iniciados na literatura de Caio já perceberam que ele utiliza várias passagens clariceanas como epígrafes de seus textos, aliás, numa carta publicada em “Morangos mofados” ele diz ter conhecido pessoalmente a escritora e que ela é infelicíssima por causa de sua “compreensão sagrada de tudo”.
   Bem, devo dizer que sinto um certo incômodo quando “recortam” frases do Caio ou da Clarice, e não sentem curiosidade de saber o contexto em que eles empregaram, ou seja, não buscam o texto na íntegra. Claro que ninguém é obrigado a gostar de ficção, mas por mais que ficção e realidade estejam intrínsecas, há de se considerar o processo escritural, o gênero textual, enfim, o fenômeno texto, então, vale a pena recorrer à obra do escritor. Pois foi só ouvir o “menino do Acre” falar de busca ao conhecimento, ao mistério, etc, corri e peguei da estante  minha edição de bolso de O ovo apunhalado. Confesso que não compreendo muito bem esse projeto escritural do Caio, isto é, entender,  por exemplo, as divisões  dos capítulos, para fazer uma crítica descente, mas esses textos me lançam numa compreensão absurda da existência. São textos que denunciam o estado de negação a que estão submetidas as pessoas que não aceitam, e sequer cogitam aceitar, o outro, pois estão fortemente sob controle das amarras sociais amparadas em arcaísmos religiosos, num poder opressor, etc. Era uma época realmente melancólica, esta descrita nos contos de O ovo apunhalado, o conto “Retratos” que aborda de modo pungente a passagem do tempo, também expõe o quanto a sociedade era impiedosamente excludente nessa época, pois os textos foram escritos entre 1969 e 1973, ou seja o período lembrado como “página infeliz de nossa história”, como canta Chico Buarque.
   O ovo apunhalado foi prefaciado pela genial Lygia Fagundes Telles, só por isso já é digno de ser lido. Sei que os mais entendidos em textos do Caio, são muito tocados pela profundidade ou pelo subjetivismo de textos como “Para uma avenca partindo”- existem inúmeras leituras desse texto no Youtube, entretanto, confesso que os contos que mais me tocaram são: “Gravata”, “Oásis”, “Retratos”, “O afogado” e “Uns sábados, uns agostos”, entre outros. Gravata, porque o conto vai tomando um rumo surpreendente até culminar no desfecho fatal; Oásis porque evoca a infância com toda a ingenuidade e travessuras que muitos de nós tivemos; Retratos, citado anteriormente, porque fala da empatia que devemos ter com os excluídos da sociedade - por que essa resistência, se o outro é feito da mesma matéria? Esse texto abarca um silêncio e um mistério personificado no artista plástico que faz um retrato do protagonista por dia, no decorrer de uma semana; O afogado, porque  além de expôr a ignorância social que encerra outras possibilidades de vivência, num enredo bem construído, é intercalado por um fulminante monólogo interior; e por último, Uns sábados, uns agostos porque, dentre outros motivos, é um conto escrito dentro da técnica clariceana. O ovo apunhalado é um dos meus livros favoritos, da vida.    
  

sábado, 29 de julho de 2017

A Disciplina do Amor, Lygia Fagundes Telles

Edição da Rocco,1998
   O conto A disciplina do amor foi o primeiro contato que tive com os textos de Lygia Fagundes Telles. Na época eu pouco entendia de literatura ou coisas mais profundas, porém aquela estória de um cachorro que ficava  esperando seu dono voltar, sem saber que este morrera na guerra (era tempo de guerra e ele fora convocado)me comoveu de tal modo que o nome da escritora cravou em minha mente. O texto homônimo é escrito no formato do conto tradicional, ou como alguns estudiosos denominam uma “short story”, entretanto, os outros textos que integram a coletânea intitulada A disciplina do amor, não apresentam um formato que se possa designar qual é o gênero específico, não é a toa que a própria Lygia os chama de “fragmentos do real e do imaginário”. Ou para efeito de simplificação, digamos que a maioria dos contos e micro - contos  deste volume possuem temática crônica.
   Talvez seja a “disciplina indisciplinada” do amor que permite a narradora fitar o olho e tentar desvendar a natureza dos animais, a exemplo dos textos sobre gatos e cachorros onde a descrição dos movimentos é minuciosamente narrada com uma precisão de detalhes: “O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse o sorriso do gato – ô bicho sutil! Indecifrável. Inatingível.” (p. 10) Já disse outra escritora, a imortal Clarice Lispector, que bicho é a forma mais acessível de gente. Pois então, nada como um texto que evidencia as diferenças entre os animais domésticos mais comuns: o cão e o gato. E a simplicidade e entrega com a qual Lygia inscreve seu estilo narrativo é um deleite a quem se debruça em suas páginas. Mas não são só os bichos que interessam à vida/escritura de Lygia Fagundes Telles: os relatos de viagens a lugares nada clichês, como a China ou o Irã são surpreendentes por capturar algum incidente na cena vivida/descrita pela narradora, como no conto A mulher de Omsk, onde a narradora-personagem usa a linguagem de sinais para se comunicar com uma mulher na Sibéria, uma vez que precisava pedir linha e agulha para pregar os botões do casaco, pois: “Era evidente que se tratava de uma mulher de uma só língua e essa era tão inacessível quanto a linguagem do vento soprando lá fora.” (p.54)

   Não é exagero afirmar que A disciplina do amor figura como uma obra singular, das mais importantes da carreira literária de Lygia. É através de A disciplina do amor que percebemos o quanto a linha que separa a ficção da realidade é tênue por mais que seja evidente a criatividade da autora em utilizar o verniz literário nos irregulares fragmentos que compõem essa coletânea. Não faltam fragmentos que abordam as leituras empreendidas pela autora e que tanto a comoveram, como atestam os textos sobre o poeta Álvares de Azevedo, pertencente “a escola de morrer cedo”, como também os textos que mostram a indignação perante algo mesquinho, como o sensacionalismo midiático em torno de tragédias como as enchentes, por exemplo, ou mesmo a apelação mostrada nos desfiles carnavalescos televisionados. Nada escapa à percepção certeira de Lygia sobre a vida, sobre nós.



sábado, 15 de julho de 2017

Pitty: emotiva e empoderada em Chiaroscuro

Chiaroscuro, em LP e CD, 3° álbum de Pitty 
   Chiaroscuro é o terceiro álbum de estúdio de Pitty e sua banda e foi lançado em 2009. Trata-se de um de seus trabalhos mais  equilibrados, ou seja, onde todos os elementos atingem  um grau exato, tanto no que se refere as letras, quanto no quesito instrumentação. Talvez pelo fato de seu antecessor “Anacrônico” soar intenso demais, tudo ali é exagerado, da depressão na faixa “Deja vù” à loucura de “Memórias”. Não que aquele seja um disco ruim, mas em Chiaroscuro Pitty conseguiu um certo grau de maturidade, disse o que queria sem os arroubos que lembram a adolescência, ou uma revolta clichê de roqueiros pretenciosos.
   Para quem não é ligado em discografia, Chiaroscuro é o álbum que trouxe o hit “Me adora”, faixa que mostra uma faceta mais pop da cantora, uma agradável canção com ares de jovem guarda e todo um clima retrô,  tão bem produzida que nem sentimos abjeção pelo termo “foda”, entoado logo no refrão! Em verdade, é o tipo de música em que não é preciso ser fã do artista nem do gênero musical para curtir, simplesmente contagia-se logo pelos primeiros versos. Outra faixa de Chiaroscuro com potencial equivalente é a balada “Só agora” faixa que mais parece uma canção de ninar, entretanto, o vídeoclipe para essa música retrata um domingo em família num sítio ou algo do tipo e não delimita-se ao fator maternidade, mas a família como um todo.
   Outro elemento que permeia esse álbum é o feminismo, presente na música “Desconstruindo Amélia”, ou seja, é uma faixa que, obviamente, já diz a que veio: pra mostrar que lugar da mulher é aonde ela quiser! Embora críticos mais severos julgam ser uma letra a nível de ensino médio, prefiro afirmar que só pelo fato da canção mencionar Balzac, já ultrapassa o fato de soar simples demais pra ser escrita por uma “mulher com pouco mais de 30 anos”, desculpe Balzac, ainda não li nada seu...  Bem, penso que é uma daquelas faixas que não pode faltar nos shows, até pelo fato de Pitty ser uma banda em que a cantora é praticamente líder. Chiaroscuro é um álbum que se torna melhor a cada audição, tanto as letras mais pessoais em que Pitty se revela emotiva demais (água contida) ou a referida anteriormente “Só agora” quanto a composições que abrangem o social “Desconstruindo Amélia” ou a que melhor representa a humanidade em luta que é “Todos estão mudos” compõem um trabalho bem executado na carreira da artista.



segunda-feira, 19 de junho de 2017

Ciranda de Pedra

Edição recente da Companhia da letras
        Certamente o título “Ciranda de pedra” pode parecer familiar para muitos devido à adaptação para novelas da Rede Globo. O fato é que a leitura do romance de Lygia Fagundes Telles é de fundamental importância para ratificarmos o valor da literatura brasileira escrita por mulheres. Sabemos que Lygia é “peixe grande”, do mesmo time de Clarice, Hilda Hilst, Raquel de Queiroz, etc. Ainda assim se faz necessário levar  alguns leitores à sua obra, pois com a acirrada concorrência do mercado editorial é provável que ela perca espaço para as modinhas literárias da vez.
   Ciranda de pedra é um romance de formação onde acompanhamos a personagem Virginia desde a fase pré-adolescente até a maioridade. Essa personagem é fruto de um “lar desfeito”, ou seja, ela nasceu  de um adultério – assunto considerado tabu na primeira metade do século XX- sua infância é muito penosa, pois vivendo com uma mãe tida como louca, com um homem, o qual ela chama de tio, mais Luciana, uma espécie de empregada, num ambiente com parcos recursos, resta-lhe alargar sua imaginação e prestar atenção em insetos, em outros animais ou mesmo em seres inanimados. Aliás, o agravante dessa situação é que em contrapartida, suas irmãs e seu “pai” habitam uma confortável casa, onde todos recebem a devida atenção, dentro de casa e também com alguns vizinhos, ao passo que ela conversa com uma mãe desorientada e também suspeita do interesse de Luciana pelo patrão. Virginia é tida como um patinho feio, sem ao menos saber a verdade dos fatos, uma vez que sua pouca idade servira de desculpa para essa omissão.
   Um traço marcante na escrita desse romance são as diversas frases aspeadas que são, na maior parte das vezes, o pensamento de Virginia ou lembranças de frases ditas por suas irmãs. Na verdade todo o romance é narrado pela perspectiva de Virginia, uma protagonista astuta e com uma imaginação muito aguçada. A descrição de suas irmãs não deixa de ser interessante: Bruna usa a Bíblia Sagrada como lema de sua vida, devido a isso condena a atitude da mãe; Já Otávia é descrita com ares românticos, desde a aparência até suas atitudes que supõem uma inconsequência. Vale ressaltar que o título Ciranda de pedra tanto alude a uma fonte com uma roda de anões, localizada numa área da casa de suas irmãs, como também ao grupo formado por Bruna, Otávia, Afonso, Conrado e Letícia, estes últimos vizinhos de infância que no decorrer da adolescência acabam por fortalecer os laços de afeto: Bruna enamora-se de Afonso e Otávia de Conrado. Quanto à Virgínia, esta nutre um amor por Conrado que o acompanha em grande parte do romance.
   Ciranda de pedra é uma narrativa inquietante, o leitor é levado a torcer por uma volta por cima na trajetória de Virginia, não que ela seja uma heroína que sofre horrendos castigos, ela jamais demonstra fraqueza, apesar de ter sofrido tanta rejeição. Aliás, essa volta por cima acontece quando ela retorna à casa das irmãs após o internato – por escolha própria- ou seja, a Virgínia de aproximadamente vinte anos retorna mais astuta e descobre a verdadeira face das pessoas que a desprezaram em sua infância. Trata-se de um romance imperdível, Lygia Fagundes Telles é um dos nossos maiores tesouros literários.

domingo, 4 de junho de 2017

A Bela e a Fera

Edição da Editora Rocco da coletânea 
    A Bela e a fera é um pequeno volume de contos de Clarice Lispector. Nessa obra encontramos contos escritos antes de sua grande estreia com o romance Perto do coração selvagem, sendo que a estes contos, somam-se mais dois escritos em 1977: Um dia a menos e A bela e fera ou A ferida grande demais. Trata-se de uma coletânea que apresenta a Clarice “espiritual”, aquela que escreve densos e belos textos, e também a escritora mais resoluta, despudorada, que escreve “com aponta dos dedos” segundo os apontamentos de Vilma Arêas.
  Como exemplo de texto pertencente a grande literatura  clariceana podemos citar “Gertrudes pede um conselho”, neste conto acompanhamos a trajetória de uma adolescente em busca de uma vida mais significativa, na qual ela fosse mais compreendida ou realizada, apesar da pouca idade para grandes pretensões. O que atordoava Gertrudes (apelidada de Tuda) era a banalidade do cotidiano, a qual sua família simplesmente integrava-se sem questionamentos ao passo que ela esperava por grandes acontecimentos. Era uma personagem ávida pelo extraordinário, curiosa, que não aceitava ir vivendo sem questionar a razão, as crenças, Deus, etc. Numa esperança de aplacar suas grandes dúvidas, Tuda escreve cartas a uma espécie de conselheira de revistas, chegando, inclusive, a ser chamada para conversar no escritório da conselheira, doravante a narradora ora adere às perspectivas de Tuda, ora da conselheira. Por vezes temos a impressão que está havendo um duelo entre ambas, pois Tuda embora seja a paciente, é uma moça esperta, ou perspicaz, como a doutora percebera. Foi uma frustração para Tuda o encontro com a conselheira, pois simplesmente: “Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!”(p.24)Como Tuda sairá dessa? A leitura do conto na íntegra assim como do livro toda irá surpreender!
  Já como exemplo de texto escrito “com a ponta dos dedos”, podemos citar “Um dia a menos”, um dos últimos textos que Clarice escreveu, cujo manuscrito fora organizado pela amiga Olga Boreli. No conto temos uma narradora-personagem que já inicia questionando sobre a morte: “Eu desconfio que a morte vem. Morte?”(p.89) Clarice é especialista em criar personagens femininas que vivem em busca de algo maior, sublime, e a solidão é uma eficaz maneira de se alcançar uma compreensão de si e da vida mesmo. Entretanto, nos contos de 1974 em diante, Clarice deixava transparecer certa impaciência, o que resultava em personagens cômicas ou mesmo bizarras. Margarida Flores, a narradora desse conto relata sobre o infame apelido de infância: “Margarida Flores de Enterro”; sobre sua solidão insuportável, uma vez que sua empregada passaria o mês de férias e ela esquecia-se dos modos de organização da casa. Havia a espera que o telefone tocasse, ela era uma mulher sozinha de trinta anos. Todavia, após várias tentativas de preencher as horas, o telefone toca e Margarida tem a possibilidade de dividir com alguém os seus pensamentos, o que ela fizera de si. Essa situação, ou seja, a conversa ao telefone, é uma cena cômica onde a narradora conversa educadamente até ir as raias da impaciência e desligar “o aparelho” como dizia sua interlocutora que era uma idosa procurando alguém que Margarida Flores sequer sabia da existência-era praticamente um trote.
  O conto que encerra a coletânea, é o texto que intitula esse volume: A bela e a fera ou A ferida grande demais,um texto onde Clarice aborda a questão social, especificamente a temática das diferenças de classe,no qual temos a narradora-personagem representando a classe alta e um mendigo com uma ferida enorme na perna como pertencente a classe dos marginalizados.O encontro de Carla de Souza e Santos com o mendigo provocara-lhe um abalo em sua rotina de mulher rica e elegante, situação parecida a da personagem de outro texto de Clarice: Perdoando Deus, onde sua personagem estava a contemplar e agradecer pela vida e de repente aparece-lhe a feiura do mundo personificada em um rato morto. Ambos os textos são esplêndidos pelo fato de Clarice extrapolar as fronteiras do maniqueísmo, aliás, nestes contos Clarice expõe um certo grau de empatia com as coisas que estão do nosso lado e, por convenção ou egoísmo tendemos a ignorar. Como a exemplo de sua personagem rica e elegante que após tormentos e reflexões chegou ao mesmo nível do mendigo da ferida grande, Concluímos com a constatação de Carla:
“_ Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...” (p.108)   

domingo, 21 de maio de 2017

Humanz, Gorillaz

Capa da edição simples do álbum Humanz
  Após seis anos sem lançar material inédito o Gorillaz retorna com o álbum “Humanz”. E o que esperar desse lançamento? Hits grudentos? Como uma nova “Clint Eastwood” ou “Feel good inc”? Ou algo na linha do “The Fall”, que mais parecem b-sides ou sobras de estúdio? A questão é que Humanz está dando o que falar, de um lado, fãs antigos reclamam do excesso de convidados que parecem anular a essência do Gorillaz. Do outro, certa parcela de fãs ou mesmo alguns críticos, celebram essa polifonia caótica organizada pelo gênio Damon Albarn.
A característica mais evidente em Humanz é a polifonia, o que realmente passa uma impressão de bagunça, desorientando aqueles que buscam um trabalho conceitual e coerente. Todavia, é notável em Humanz a preocupação com o coletivo, com a humanidade mesmo, liberta de preconceitos, lembremo-nos da onda conservadora que domina o mundo nos últimos tempos. Foi esse olhar para a realidade opressora que culminou na inteligente letra de “Hallelujah Money”, além, claro, do fato dela ser cantada por Benjamin Clementine, o que é um alívio quando se está cansado da mesmice do cenário musical e de repente deparamo-nos com um vocalista um tanto peculiar. Quanto aos arranjos dessa faixa, esse aspecto sim, é muito do que o Gorillaz mostrou no “The Fall”. No entanto, ao agregar tantos convidados, torna-se inevitável não recordarmos do excelente “Plastic Beach”, álbum de 2010 que teve colaborações de Snoop Dog, Bob Womack, Little Dragon, entre outros. Em Humanz o número de convidados é absurdamente maior. Temos rappers como Pusha T., Popcaan; a diva Grace Jones; o trio de hip hop De la soul; Jehnny Beth, Kelela, entre tantos outros nomes, conhecidos ou não do grande público.
Tudo em Humanz aponta para o fato de que Damon Albarn não quer brilhar sozinho. Na melancólica “Busted and blue” temos Kelela (ótima) colaborando nos vocais, “Andromeda” é um feat D.R.A.M., ambas as faixas estão entre as melhores desse trabalho, principalmente para quem aprecia a interpretação de Damon Albarn, o artista que “me amolece os ossos” quando canta uma balada e que clama para que o público vibre, pule, quando ele e sua banda estão no palco cantando uma música agitada. Certamente ele iria gostar do público brasileiro – que é um bando de louco. Já diz Faustão: “Quem sabe faz ao vivo”, pois então, algumas faixas que parecem insossas no disco tomam outra dimensão ao vivo, é o caso de “We got the power”, que tem uma enérgica Jehnny Beth colaborando nos vocais, e também Noel Gallagher, e também sinos! Numa composição otimista e empolgante que faz querer pular insanamente onde quer que se esteja. Essa pegada agitada, o clima clubber é também a tônica de “Sex Murder Party”, embora eu não fazendo ideia sobre o que essa letra fala eu fico a dançar em êxtase. Humanz divide muito opiniões, como fan do Gorillaz, fiquei satisfeito com esse novo trabalho. “Plastic Beach” continua insuperável, mas Humanz cresce à medida que se ouve e conhecemos os artistas novos que agregam a polifonia caótica desse álbum. Nota 8,0.

domingo, 7 de maio de 2017

O Lobo Atrás Da Porta

Leandra leal em sua premiada atuação do filme
   O lobo atrás da porta, como o título já sugere, é um filme brasileiro que alude a célebre estória da Chapeuzinho Vermelho. É uma produção dirigida por Fernando Coimbra e estrelada por Leandra leal, Milhen Cortaz, Fabíula Nascimento, entre outros nomes de peso do cinema e televisão. A narrativa que fala do sumiço de uma criança no subúrbio carioca é baseada em fatos reais que ocorreram na década de 1960.
   Na cena inicial de O lobo atrás da porta temos um delegado desbocado, interpretado por Juliano Cazarré, colhendo depoimentos dos pais da criança desaparecida, numa cena ágil que já aguça a curiosidade do espectador pra saber como se deu o sumiço de Clarinha, filha da ingênua Sylvia (Fabíula nascimento) e de Bernardo (Milhen Cortaz). O delegado intima com a fome e sagacidade de um lobo, os pais da criança e a tia da creche (Karine Teles), esta, afirmando ter liberado a criança após um telefonema da mãe autorizando que uma amiga levasse Clarinha embora, uma vez que Sylvia estava doente. A cena apesar de tensa – o quão desesperador é a impotência de não saber onde está um filho, sendo criança então..., essa sequência tem alguma dose de humor negro provocada pelo personagem de Cazarré.
   Todavia o lobo dessa narrativa não é o desbocado delegado, há mais pessoas a serem interrogadas. Que segredos os pais de Clarinha escondem? Há quantas andava o casamento deles? É ai que Bernardo relata ao delegado que tinha uma amante, Rosa (Leandra leal), jovem, bela, misteriosa, a presa ideal para um predador tal qual vemos na feição de Milhen ao conhecer Rosa no vagão do trem rumo ao subúrbio carioca. Ressalto que após a sequência do depoimento dos pais de Clarinha, a narrativa abarca um tom de suspense, com vários enfoques na nuca de Rosa, em seus passos intrigantes e maliciosos que tornam-se mais intensos devido a trilha sonora em tais cenas. Nessa altura, o delegado já chegou a Rosa e está ouvindo seu depoimento, não economizando, é claro, no linguajar de baixo calão. A versão de Rosa nos coloca numa sensação de horror, diante das consequências que certas atitudes provocam. Obviamente o verdadeiro lobo dessa história merece cumprir sua pena como está descrito na lei, entretanto, isso não isenta Bernardo de culpa pela forma como conduziu seu caso com Rosa. O machismo ou sem-vergonhice de Bernardo provoca náuseas, não que eu esteja  a justificar Rosa.
   Se este filme fez barulho nos festivais por qual passou, chegando a levar importantes prêmios, isso é mais que merecido. Fernando Coimbra, o diretor, juntamente como estelar elenco entregaram um filme perturbador, apresentando um drama-thriller que configura a força do cinema brasileiro, ou seja, um filme artístico, diferente do que as massas entendem por filme nacional, uma vez que geralmente tendem a ter preconceito com as produções brasileiras, por associarem à temática de favelas ou as comédias toscas como as encabeçadas por Leandro Hassum e Cia.

P.S. Não esqueçam de verificar a classificação indicativa. Bom filme!

sábado, 22 de abril de 2017

"Tropical, Latino-americana"

Céu em foto da fase Tropix
   Tropix é o quarto álbum de estúdio da cantora paulistana Céu, há pouco mais de um ano do seu lançamento, a cantora continua colhendo os frutos desse primoroso trabalho. Seu show na última edição do Lollapalooza Brasil ratifica o quanto a sua música é universal, tanto pela versatilidade dos arranjos, quanto pela poeticidade que emana de suas composições. No aclamado álbum apenas duas faixas não foram compostas por ela: “Chico Buarque song”, um cover da banda Felini e “A nave vai”, composta por Jorge Du peixe, esta, uma das mais irresistíveis do Tropix, sendo a faixa que encerra os shows da turnê. Certamente é uma das melhores do álbum,  essa composição  aborda, entre outras acepções, a nossa insignificância nessa “nave”, ou o nossa inconstância e os desdobramentos – “De manhã sou um, de noite já fui dois.” “Seremos quem somos ou serei quem sois.”
   Outra característica do Tropix é a abordagem do social, ou seja, Céu conserva seu intimismo nas composições, mas abriu o leque para uma esfera maior tematizando a responsabilidade com os filhos, isto é, na faixa “Rapsódia brasilis” o eu lírico incorpora a figura da empregada que fica com a criança durante grande parte do tempo, observando seu crescimento, as brincadeiras, uma vez que, geralmente a patroa/mãe, trabalha fora e “delega” - expressão empregada pela própria Céu numa entrevista –  à empregada ou babá a função de cuidar dos filhos. Basicamente é uma composição que vai ao encontro do que é retratado no filme “Que horas ela volta”, obra de outra ilustre paulistana, Anna Muylaert. Rapsódia brasilis é a faixa que abre os shows da turnê, seguida pela primeira a ser divulgada do álbum “Perfume do invisível”, faixa empolgante e que sintetiza o ideal desse trabalho: a utilização sonora de linguagem eletrônica, o pixel, dai Tropix, um eletrônico somado a brasilidade dos trópicos.

   Já que falei em brasilidade, em tropical, não há como esquecer da faixa que teve mais aceitação nesse trabalho da Céu: “Varanda suspensa”, a letra versa sobre  uma paisagem do litoral norte paulista, reminiscências de quando a cantora ia passar as férias, há muito tempo, provavelmente em criança, em casa de avós em São Sebastião. Impressiona como algo tão simples, transforma-se em pura poesia nos dedos e garganta de Céu. E também o mérito deve ser atribuído aos produtores desta canção e do trabalho como um todo. Tropix é certamente um dos seus melhores trabalhos. Não há faixa que se queira pular, pois cada uma possui uma peculiaridade a ser apreciada e geralmente é a poesia da compositora. Não há como ficar inerte quando ela embala “Saiba, meu amor/Cuidarei de nós/Mesmo quando eu for/ Em busca de mim/Em busca do que/Faz você me amar/Mais. Alguns exaltados até comparam-na com Maria Bethania, o que nem é preciso, Céu é ela mesma!

domingo, 9 de abril de 2017

Nostalgia

Trilha sonora da novela exibida em 1994
  Tudo começou com a volta do vinil, que por sinal custam muito caro, mas a vitrola fora um inestimável presente. O primeiro vinil ganhei antes mesmo do aparelho. Novíssimo claro, o LP Tropix da cantora e compositora paulistana Céu. Todo fim de semana a faxina é com a bolacha girando devagar ao volume que irradie pelo parco ambiente de dois cômodos que habito. O amigo conterrâneo comentou o hábito retrógrado, mas eu disse-lhe “é vintage” ao que ele esboçou um “ahh”. Mas como adquirir os vinis novos com tão salgados preços? O jeito é garimpar os discos do século XX nos sebos, o que não falta em Sampa, não é mesmo? Enquanto 99% das pessoas, meu namorado inclusive, viça o brilho no olhar com o novo comercial do mais novo aparelho celular, do meu lado mesmo, no intervalo da novela. Não sinto nada mesmo por essa inovação toda! Por mais lindo que seja o celular.
  Que sensação radiante! Por outro lado, parece-me, mais um indício da insatisfação pelo presente. Sim, a confirmação veio com o apreço às trilhas internacionais de novelas. As do século passado, claro! Precisamente as da última década, os anos noventa foram minha descoberta do mundo. A imersão na horrível fase que é a adolescência. Bem, mas naquela década, as telenovelas da Globo eram bem contadas. Quem dessa época não recorda de “Quatro por Quatro” ou “Vamp”? E a trilha sonora é um capítulo à parte. Hoje tudo soa previsível demais... as redes sociais tem sua parcela de culpa, os assuntos infestam-se por timelines até esgotarem o sumo e dar vez a outro assunto e no fim tudo é mais do mesmo. O que fica? O presente me aniquila, volto ao passado pra recuperar algum sentimento. As bolachas com os atores na capa servem de antídoto para ultrapassar. Breguice? Que seja, mas as canções até provocam epifanias. Talvez faziam muito sucesso pela pouca competitividade, então os músicos tiveram nessa época sua fase áurea. Quem não recorda o Pet Shop Boys, Bon Jovi, Information Society, Sade, enfim, inúmeros que até continuam na ativa, mas o som daquela época era tudo! Só não consigo lembrar que personagem da novela certa canção era  tema, até porque muitas novelas eu nem assistir. Depois darei uma olhada no canal Viva.

  Pego-me a lembrar que nessa década de noventa muitos assuntos eram um tabu desgraçado! Ah... mesmo assim que saudade que deu... “o passado é uma selva de horrores” disse R. M. D. mas bem que eu voltaria no tempo... pra variar, a beleza de Marion Cotillard leva-me a assistir “Meia noite em Paris” que aborda, entre outras coisas essa insatisfação com o presente – sob o ponto de vista de ilustres como F. Scott Fitzgerald, Salvador Dali, Paul Gauguin, entre outros e do protagonista do filme “Gil Pender” vivido por Owen Wilson, na verdade a personificação do grande Woody Allen. O que seria de mim sem filmes bons como esse... cumpriria meu destino, ora essa! Por enquanto enamoro-me dos LPS baratos de trilhas de novelas com as atrizes nas capas ostentando penteados à moda da época. As canções soam tão autênticas, doces melodias, etéreas, já nem sei como descrever as sensações nostálgicas. Mas nem adianta me convidarem pra festas temáticas tipo “flashbacks” que provavelmente não irei. Velho, eu ao menos, durmo com as galinhas. 

domingo, 26 de março de 2017

Algumas notas sobre "A hora da estrela"

Edição da Editora Rocco, de 1998
   A obra “A hora da estrela”, de Clarice Lispector é geralmente o primeiro contato que os adolescentes obtem com textos da referida autora. Seria sua obra mais palatável? Sobretudo a leitores iniciantes em tão densa literatura? Seria o fato desta novela conter poucas páginas? A questão é que não raro ouvimos um jovem aluno dizer que “odeia” essa autora. Sim, essa autora que possui uma vasta obra tanto singular quanto cheia de desdobramentos que respondem aos vários estados d’alma, ou seja, em sua escritura contém a Clarice jovem, a Clarice mãe ou mesmo a Clarice humana que sonda vários aspectos do homem na Sociedade.
   Levando em conta que o fato da iniciação em Clarice ocorra através de “A hora da estrela”, é provável que o jovem leitor sofra uma perturbação logo nas primeiras páginas, aliás, logo na “Dedicatória do autor” onde somos apresentados a vários músicos clássicos que só mesmo um indivíduo banhado em erudição pode reconhecer nomes como “Schumann”, “Debussy” ou “Richard Strauss”. Pensemos nos adolescentes brasileiros de classe baixa embebidos de funk ostentação ou proibidão mesmo ao adentrar em dedicatória tão rebuscada, o estranhamento é certo. Há também o fato da narrativa “de fato” demorar a engrenar, ou seja, em “A hora da estrela” a metalinguagem é gritante, literalmente é como se houvessem duas narrativas: a do narrador argumentando as possíveis escolhas narrativas e a história em si. Que história? “A de uma inocência pisada”. “De uma miséria anônima”. São palavras da própria autora em sua entrevista na TV Cultura.
   A leitura de “A hora da estrela” tem diversos pontos positivos, além do humor característico da ambígua Clarice, sempre melancólica e feroz, a “tímida e ousada”, apresenta uma personagem, Macabéa, uma nordestina de Alagoas. A esta é atribuída uma série de defeitos e o leitor fica entre a raiva ou a piedade para com personagem tão desprovida de tudo. Macabéa vive sem perspectiva alguma, como um ser “lesado”, desleixado. A personagem é uma sonhadora deslumbrada pelas estrelas de cinema, sobretudo Marilyn Monroe. O narrador indaga sobre como descrever de modo sofisticado uma vida tão parca como a de Macabéa. E mesmo sendo tão despreparada para encarar as coisas práticas da vida, seja no trabalho, nas relações pessoais, a personagem é atraída por alguma informação, pois gasta suas horas ouvindo a Rádio Relógio ou colecionando anúncios. É realmente de uma ironia impressionante esta obra de Clarice, isso sem contar no humor, fator que atinge o ápice quando Macabéa arranja um namorado: Olímpico de Jesus, nordestino assim como ela. O diálogo entre ambos é risível, ele conta-lhe suas ambições ao passo que ela, sempre alheia ao seu papel no mundo, relembra as notícias que ouvira na Rádio Relógio. Outra característica marcante de Macabéa é que, apesar de seu desalento, ela tem a língua afiada, vejamos um diálogo entre ela e Glória, sua colega de trabalho:
- Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
- Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
- Eu não sou feia!!!, Gritou Glória. (p. 62)

   Talvez a escolha dessa narrativa para que jovens alunos conheçam a obra de Clarice seja devido ao fato da protagonista servir de exemplo daquilo que não devemos ser. Esclarecendo, os jovens estão sendo educados para que exerçam seu papel de cidadão, agindo em prol do seu bem estar e o progresso da sociedade. Macabéa, coitadinha! Certamente, muitos leitores torcerão por ela, ou seja, em se tratando daqueles que venceram a perturbação das primeiras páginas e prosseguiram na leitura até encontrar, de fato, a história contada por Rodrigo S.M. Acredito que estes jovens leitores que concluíram a novela tem muito a ganhar com o conhecimento de personagens tão envolventes como Macabéa e Olímpico, aliás, com a narrativa por inteiro, soma-se o intricado desenrolar da narrativa, sempre interrompida pelo narrador (sobretudo na primeira metade) aos diálogos entre Macabéa e seu namorado, ou entre Glória e finalmente entre a cartomante que lhe vaticina um futuro brilhante.  

sábado, 4 de março de 2017

La La Land

Os atores Emma Stone e Ryan Gosling em perfeita sintonia
   Para os amantes do cinema, a temporada de premiações, especialmente quando são divulgadas as produções que concorrem ao Oscar, a corrida ao cinema é inevitável. A menos que as condições financeiras impossibilitem, mas nossa curiosidade em conferir os filmes mais indicados é tamanha que tentamos driblar a escassez monetária. No mais, é curiosidade mesmo ou um grau de intelectualidade que nos seduz. Sim, mesmo não sendo expert na sétima arte, apesar do repertório paupérrimo que sei acerca da história do cinema e dos poucos clássicos assistidos, sou um aspirante a cinéfilo. Pretensão? Que seja. Bem, logo que começou a especulação em torno de “La La land”, a curiosidade bateu minha porta. Quando o filme levou vários prêmios no Golden Globe e sucederam-se as catorze indicações ao Oscar a curiosidade foi geral. “Que esse filme tem de tão bom?” “O que significa esse título?” Se o assunto era cinema, o filme de Damien Chazelle era o mais pronunciado. Afinal, trata-se do mesmo diretor de Whiplash: em busca da perfeição, filme vencedor de três Oscars!
   Então corri ao cinema próximo de meu bairro que pertence à região do centro expandido de São Paulo: o cinema do Shopping Metrô Boulevard Tatuapé não é tão lotado quanto o outro, ainda assim, a fila de umas quarenta pessoas estava a me deixar impaciente. Poderia comprar nas máquinas, onde as filas eram menores, mas minha aversão à tecnologia e tudo que soa moderníssimo falou mais alto, preferi encarar o jovem guichê e comprar uma inteira para ver La La land e assim me senti antenado e não  fazer a Glória Pires nos papos sobre cinema. Estava na companhia de meu namorado, literalmente, era só sua companhia mesmo, pois é pessoa que prefere os filmes barulhentos de ação, ou os do tipo “baseado em fatos reais”, e que sejam dublados, "pois nós falamos português!" Como percebem, estou mesmo arranjado. Comecei a entoar “City of stars” ansioso pra  ver a aclamada obra de Damien Chazelle. Ao adentrar a sala cinco, percebo que os assentos eram ocupados por muitas crianças, acompanhadas dos pais ou tios, claro. Pus-me a pensar: Será que viram algo de  lúdico no título? Seriam as indicações ao Oscar que aguçou a curiosidade dos pais dessa ala infantojuvenil? Havia tantas opções de filmes...

   Passado os trailers, concentro-me em La La Land com a devoção de um católico praticante. Seduzido pela estética cinematográfica do jovem Chazelle, tento devorar o estranho e expressivo rosto de Emma Stone; A beleza e o carisma de Ryan Gosling aqui funcionam excepcionalmente. A sintonia do casal proporciona um show de atuação e apesar de não serem dançarinos, suas performances confirmam o empenho dedicado para não fazer feio. Até porque quem conhece o diretor, Chazelle, fala que o moço é perfeccionista. O roteiro é cativante, abordando a busca pelos sonhos, os verdadeiros e quase impossíveis sonhos. Conseguirão? Terá um happy end? E quando os sonhos envolvem a própria arte? Mia (Emma Stone) persegue a carreira de atriz, já Sebastian (Gosling) quer abrir seu próprio clube de jazz e com que propriedade seu personagem detalha seu amor por esse gênero musical! Bom, mas há certas salas de cinemas em que as pessoas parecem confundir com a sala de casa! Sabia que essa plateia infantil não estava caindo nada bem... ora ouvia-se cochichos, ora risadas, um certo incômodo que certamente não ocorreria nos circuitos mais alternativos. Não bastasse os pais a ajeitarem as crianças, do meu lado meu namorado sonha e não é o sonho dos protagonistas de La La Land, mas o seu próprio! Só faltou roncar. Uma sacola caiu-lhe sobre seus pés e o despertou por alguns minutos. A medida que as estações sucediam-se, algumas pessoas resmungavam, a poesia, a beleza do filme não os tocara. Quando apareceram as letrinhas “the end” uma garotinha beirando uns nove anos deu "Graças a Deus" soltou um grito de alegria e em seguida levantou-se eufórica pelo término de tão “péssima” escolha de filme a ser assistido. Uma senhora da fileira da frente indagava como uma “bosta” dessa foi indicada ao Oscar. Já meu namorado, bem melhor não comentar... eu continuo em busca dos meus sonhos nessa ou noutra land.