Ela estava enfim de
férias! Os últimos meses na loja de utilidades domésticas no Pari foram muito cansativos.
Muito caroço até pra comprar “tapué”. Era assim mesmo que as clientes falavam.
Ela também, quando começara a trabalhar naquele “paraíso do lar”. Gonçala não
parava de pensar no recibo de férias: “período de gozo de 24 de dezembro a 25
de janeiro”. Era a felicidade de qualquer cidadão da classe F, de fudido. Como
ela estava em êxtase... ia aproveitar as festas de final de ano e ganhar umas
gramas. Só nessa época visitava seus parentes, estes, enevoados pelo espírito
de confraternização, esqueciam as palavras ditas no decorrer do ano: “ela só
procura a gente quando tá precisando”. “Mas com Gonçala, nunca se sabe... ela
parece que vive num mundo a parte”. Até isso ela teve que ouvir.
Na sua mente ecoava o
mantra: “período de gozo de 24 de dezembro a 25 de janeiro”. Ia lá gozar coisa
nenhuma! O corpo que não lhe venha com
essas danações! Ia era purificar o espírito, focalizando suas energias apenas
para o que realmente lhe proporcionasse avanço. Como ser humano mesmo. Ela que ultimamente
andava à deriva de todos. Via as tragédias na TV e sequer mudava as expressões
do rosto. Não era má, mas a vida se mostrava tão injusta que Gonçala ficara
apática, muda. Como naquela música: “e não há razão que me governe... eu tou exatamente
onde eu devia estar”. Não mais isso, tinha certeza que Pitty não era aquilo que
entoava. Ia se reciclar. Era o tempo ideal. Mas por onde começar? Por um instante
percebeu, que estava repetindo hábitos de quando estava de folga. O que
acontece? Parou por segundos, olhou-se no espelho, concluiu: a casa está
imunda! Como pôde se tranquilizar num lar apagado, sem sinal de polidez? É
certo que tirava o pó dos móveis, utilizava uma imitação de Veja multiuso, etc,
mas algumas teias de aranha saltavam-lhe à vista. E um amontoado de papeis,
causara-lhe certo incômodo, tantas coisas, acabavam por lhe tirar seus traços
pessoais. Tinha que começar.
O primeiro passo era pôr
algo pra tocar, foi até o porta-CD e tomou um susto com a quantidade de discos.
Qual escolher? Spice Girls lhe remontaria a infância e também ela se empolgaria
na sua imensa tendência à distração. Rodopiaria a casa inteira, porque lhe baixaria
a Mel B., sua preferida. “tempere a sua vida” era o refrão chiclete. Não,
fizesse isso e quando terminaria a faxina? Olhou o do Ney, mas a voz dele dilacerava sua alma. Se é que ainda
tinha uma... acabou escolhendo Ray of light, da Madonna, o seu ideal de ser
humano. Ideal inatingível, diga-se de passagem, um amor platônico. Nunca que
alguém nas condições precárias de Gonçala, em sua pequenez existencial, iria
alcançar até os próximos mil anos, a condição elevada de Madonna. Never! Mas se
esse era seu karma, o que se há de fazer? Tinha era que restaurar a clareza de
sua casa, começando pelo seu quarto, um antro de papéis sem nenhuma utilidade.
Com exceção dos livros, claro. Mesmo sendo comprados num sebo, eram o seu maior
tesouro. Da estante voaram cartões de natal, fotos de ex-namorados, contas de
séculos atrás, atestados médicos... por que amontoara tudo isso? Dinheiro? Uma peça
de porcelana chinesa servia de cofrinho para as moedas, era seu consolo,
pensou: como sou lascada! E já estou com 35 anos e essa vida de parcos
recursos... todas, as suas amigas tinham casa própria e carro na garagem. Não,
melhor seria não pensar e prosseguir limpando. Afinal, ela não era a G.H., não
podia se dar ao luxo de viajar pra dentro de sí. Até porque, ao contrário
daquela, seu quarto precisava mesmo da faxina. E Gonçala não tinha muito em que
pensar de sí, além de sua pobreza extrema. Quem era Gonçala na fila do pão? A
resposta era: um quarto, uma cozinha e um banheiro para deixar brilhando. Não
era porque morava numa quitinete do Cambuci, que era obrigada a se consumir na
poeira. Trabalha porra! Era assim que baixaria-lhe a Neide e aconteceria a
precisada faxina.
Só parava poucas vezes pra
bebericar um café e fumar um cigarro, Minister. Lembrou-se, da colega da loja
que advertira: “tú trabalha aqui no Pari, remediada que é, e fuma esse cigarro
de pedreiro? Já imaginou estando na balada e alguém te pede um cigarro e tú
disponibiliza um cigarro de quinta?” Gonçala perdera a linha, óbvio. Mandou um,
vá se fuder que ela fuma o cigarro que ela quiser... ela não conhecia essas
coisas de sutileza. Mas, enfim, a faxina pesada era o primeiro passo para se
livrar não só do amontoado de inutilidades e poeira. Como sabe-se, ela não iria
gozar de prazeres carnais ou momentos frívolos após o natal e a virada. Iria passar
seu “projeto de vida” a limpo até chegar num estado de “tem de ser por aqui que
irei”. Ao chegar à cozinha, areou as panelas, limpou toda a geladeira que só
tinha Pepsi, deixou o fogão um brinco e lavou o banheiro. Chegara ao fim a
faxina. Estando só pó da rabiola, seja lá oque significa rabiola, foi enfim
tomar seu banho. Olhou-se, nua no espelho: era outra. Pálida, pensou: “ quando
irei à Praia Grande?”