domingo, 19 de junho de 2016

Comentando "Os da minha rua", de Ondjaki

Livro de contos, memórias de Ondjaki
Uma infância plena e emocionante, é isso que transborda em todos os contos de “Os da minha rua”, do escritor angolano Ondjaki. Não há coração gelado que não se derreta diante de estórias tão emotivas, por vezes divertidas, uma vez que, cabe à criança brincar e fantasiar no mundo que a cerca. Os vinte e dois contos de “Os da minha rua” abarcam uma fase do “antigamente”, mas este é um tempo que persiste intensamente vivo na memória do menino Ndalu, ou Dalinho personagem-narrador de todos os textos dessa obra. Além de ser um tempo que passava devagar para estas crianças, segundo elas: “(...) vivíamos num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade.” (pag. 59)
“Os da minha rua” refere-se aos vizinhos e os parentes  que acompanharam o menino Ndalu nas mais diversas travessuras, ou apenas vivenciaram acontecimentos importantes numa fase em que se está a conhecer as pessoas e suas relações com o mundo. Alguns textos dessa obra lembram aquelas redações no estilo “minhas férias”, no entanto, a escrita de Ondjaki, além de ser guiada pela emoção de uns “olhinhos infantis”, a mesma é construída numa verve poética consistente. De conto em conto o leitor toma conhecimento da maestria de Ondjaki em destilar a leveza, a curiosidade, as traquinagens dos tempos de antigamente e como os cheiros, os sabores dos lugares da infância emanam de cada memória evocada. A honestidade com a qual são narradas as estórias, por vezes, descambam para o humor, seja pela sinceridade das crianças, que ainda não atinam para as regras do mundo adulto como,  por exemplo, na inusitada pergunta do “candengue” Jika a Ndalu: “Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa?”, cujo texto também aborda a fantasia do mesmo pequeno Jika, que salta do telhado com um guarda-chuva numa tentativa de voar. O toque de humor também surge na personagem “queixinhas”, ou seja, a que conhecemos aqui no Brasil como “dedo-duro”. Em algumas situações sente-se pena da personagem “queixinhas”, como a dizermos que é porque são sinceras, dai entregam seja quem for. Por exemplo, no conto “Jerri Quan e os beijinhos na boca”, onde o “candengue” Ndalu , acaba “dedurando” o casal beijoqueiro ao pai da moça, ao atender ao telefonema, pois segundo o narrador “É que nós, as crianças, gostamos de responder só assim sem pensar muito no que afinal vamos dizer." (pag. 14) Já em “Manga verde e o sal também”, “Dalinho” não titubeia em fazer queixinhas e ainda paga os insultos na mesma moeda, como o troco dado em Madalena Kamussekele, ele prometera que se Madalena lhes desse sal para comerem com manga verde, Tia Maria e a avó Nhé não ficariam sabendo. Ao alertar Madalena para que apronte a mesa do jantar para a chegada da tia e da avó, Madalena responde-lhe mal: “A conversa ainda não chegou na casa de banho.” Foi o que bastou pra Dalinho fazer queixinhas e utilizar a mesma resposta de Madalena quando esta estava levando cintadas da tia Maria.
As visitas a parentes distantes, as diversas situações na sala de aulas, as visitas indesejadas dissimulando algum interesse, a telenovela Roque santeiro, dentre tantas vivências descritas em “Os da minha rua” fazem destes contos leitura obrigatória, seja ao público infantojuvenil, seja ao leitor adulto que poderá também relembrar a sua infância. Ressalto que toda a fantasia infantil, a leveza de algumas situações que perpassa quase todos os textos não resiste à densidade, à tristeza descrita no conto que encerra essa obra, “Palavras para o velho abacateiro”, cujo texto aborda, entre “lágrimas e chuva” a noção de despedida, justamente nesse texto que Ondjaki lança mão de um intenso lirismo, fato que o faz figurar entre os escritores africanos mais conhecidos no Brasil.


domingo, 12 de junho de 2016

Comentando "Antes do Baile Verde"

Edição recente da coletânea
      Antes do Baile Verde figura entre as principais obras de Lygia fagundes Telles. Na coletânea de contos, o leitor é apresentado a uma gama de personagens diversos que vão do motorista de caminhão a músicos, estes, incluindo saxofonistas e cantoras de óperas, dentre tantos outros tipos comuns como casais de namorados em crise, ou mesmo familiares em conflito.
Os contos de Lygia aparentemente soam simples, apesar da sofisticação da autora que já introduz o leitor na atmosfera do texto, ou seja, esqueça uma introdução comum ao que se espera da contação de estória. Assim como Clarice Lispector, entender, pegar a linguagem de Lygia requer a releitura do texto. Os conflitos humanos são comuns, entretanto sob a "pena" da escritora toma dimensões impensáveis, as mais surpreendentes. Talvez pela disfarçada sondagem psicológica de algumas personagens, que por vezes são apresentadas em forma de obsessão, como no conto A janela, texto onde uma personagem, inserida num quarto fita a janela e, num tom  obscuro, rememora um passado onde avistava-se uma roseira daquela janela. Insere-se ai, um quê de suspense, um homem "estranho" parecendo evocar um luto e sua interlocutora, a dona do quarto, a agir com naturalidade. Esse suspense é narrado com a maestria característica da autora que termina o conto de modo coerente com o restante da narrativa, aliás, esta é só uma das opções de terminar bem um conto. Também nos textos com finais em aberto, por exemplo, o conto que nomeia a coletânea, o resultado é mais instigante ainda, meio que cinematográfico, pois imediatamente ao terminar a leitura do conto, visualizei (involuntariamente) as lantejoulas rolando pela escada. Que poder literário tem Lygia!
Bem, já que falei do conto, Antes do Baile Verde, acrescentando mais sobre o mesmo, ressalto que foi um dos textos premiados da autora. Basicamente, temos uma patroa com sua empregada envoltas com os preparativos da fantasia que Tatisa, a patroa, usará no baile verde de carnaval. Aliás, a patroa é uma moça mimada, fútil, o que se percebe no fato de ficar a toda hora acelerando Lu, sua empregada, para que termine com a fantasia. O pior, é que no quarto ao lado está o pai de Tatisa agonizando. Motivo que eleva a tensão no (do) conto a proporções insanas. Tatisa não quer perder o baile por nada, tenta convencer sua empregada a passar a noite com o pai, mas até onde vai seu direito de patroa? E o amor filial? Não teria, sua empregada, o mesmo direito de ir ao baile? Há horas em que Tatisa expõe sua arrogância, dirigindo-se à empregada: "Ih, como é difícil conversar com gente ignorante." Em suma, o conto abarca questões tanto sociais quanto psicológicas, tendo em vista o ethos das personagens, a patroa soberba e a empregada vulgar, esta que bebia cerveja e tinha um namorado de nome Raimundo.
Seria tarefa difícil escolher quais os melhores contos de Antes do Baile Verde, todo texto de Lygia exerce tamanho fascínio, ou seja, sua criatividade emana da entrelinha, da aparente banalidade descrita que descamba para um segredo maior, em alguns casos para enredos fatais, sombrios como por exemplo, "Venha Ver o Pôr do Sol, conto no qual evoca um Edgar Allan Poe sem igual. Outros textos abarcam o alento, ao qual a maioria dos indivíduos se agarram para prosseguir ante os infortúnios e as incertezas, como em Natal na Barca, texto pungente também, e inquietante. Não é a toa que Lygia figura ao lado de Clarice, Hilda Hilst, dentre outras grandes escritoras brasileiras.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Impressões sobre Gigantes- Cinco amigos. Uma história.

Gigantes: obra lançada em 2015
A frequente curiosidade para conferir o que acontece no cenário da literatura contemporânea brasileira levou-me á leitura de Gigantes - cinco amigos, uma história, da autoria de Pedro Henrique Neschling. Uma boa novidade, considerando meu desconhecimento da investida de Pedro nesse viés artístico. Trata-se de uma narrativa fluida, de estilo simples uma vez que assumindo as perspectivas das personagens, deflagrando os vários acontecimentos, os objetivos e ilusões que se passam por volta de uma década, sua linguagem é calcada tendo em vista cada uma das cinco personagens principais.
O título, Gigantes, é uma alusão ao sonho de todo indivíduo que idealiza, busca a realização de seus grandes objetivos, o que é comum no término da vida escolar, onde temos que decidir que faculdade fazer, em que investir, o que fazer a partir de então? São cinco amigos de escola que, após a festa de formatura, dispersam-se, seja por questões de ideais diferentes ou por motivo de deslizes, como a separação do casal Fernando e Duda, o que nos é conhecido logo no início do romance, quando Lipe, fiel amigo de Duda, delata a traição de Fernando, este, um aspirante a uma brilhante carreira no cinema. Doravante, é quando se concentra em Fernando, personagem culto, com seu cacoete coçando o braço, que a narrativa denota força e não sucumbe ao melodrama comum. Apesar de personagens descontraídos, como Zidane; românticos e certinhos, como Duda e o amigo Lipe, é em Fernando com sua percepção apurada da realidade, seu gosto pela arte, que observamos a inquietação do indivíduo do nosso conturbado tempo. Outro aspecto positivo, de quando a narrativa concentra-se em Fernando, é que é através desse personagem que vemos o "glamour" do mundo das celebridades cair por terra, ou melhor, tudo se mostra fútil, superficial, caem as máscaras, Fernando incomoda-se pelo fato de algumas celebridades cumprimentarem apenas com um "oi", como se todos tivessem a obrigação de conhecer-lhes. Aliás, adentrando e convivendo com o meio artístico, depara-se com disparates como a pretensão de alguns atores que deturpam uma obra canônica, além de não primarem pela arte, mas pelo lucro.
       Outra personagem interessante de Gigantes, é Camila, o pivô da separação do casal Duda e Fernando.
 Camila é a fome de viver, o destemor, mesmo que por vezes beire a inconsequência. Nem boa, nem má, perfeitinha? jamais. Camila não deixa passar oportunidades, mas sabe até onde ir com suas atitudes. Cruzando oceanos, experimentando sabores, cheiros diversos, Camila foi até Portugal, um lugar "gira" na expressão da terrinha e lá despertou para outros desejos que até então não tinha experimentado, lá conhece uma paixão pra lá de tórrida. Além do fato da narrativa trabalhar as questões linguísticas, ou seja, lança mão, em algumas passagens, do português falado em Portugal e dá-lhe ênclises, como nas declarações, "amo-te, miúda". Claro que nem tudo são flores nos caminhos de Camila, fortes acontecimentos durante sua morada em Portugal, exigirão muita determinação de sua parte. E mais uma vez ela trará á tona sua fortaleza.
Gigantes, consiste numa narrativa ágil, as peripécias são alternadas, de modo que são deflagradas acontecimentos relevantes na vida dos cinco personagens, mesmo que ambos pouco se cruzem depois da formatura. Outro ponto assertivo da narrativa de pedro Henrique Neschling, são os finais dos capítulos, sempre apontando para uma resolução do impasse contado. Doravante, nas vivências de Lipe, que aguenta chiliques de seu chefe e seu "sutil" bordão, é chegada a hora em que o belo e recatado mocinho ( do lar?) manda um, mesmo em pensamento, "meu cú", após uma insólita situação. O aspecto estético, referente ao término do capítulo, sugere que Neschling domina, também, a escrita do conto. Gigantes, é uma narrativa envolvente. o recorte de drama das personagens, as pitadas de leveza, sarcasmo denotam a construção de uma prosa segura e que chegou no cenário literário no momento certo.