quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Os "Laços de família", de Clarice Lispector

Recente edição da Rocco
   A coletânea de contos “Laços de família” é o livro ideal para quem pretende conhecer a obra de Clarice Lispector. Devido a popularidade da autora ter aumentado graças às redes sociais e as várias frases atribuídas a este mito, nada mais justo que adentrar o vasto território dos textos consagrados, e o gênero conto, por sua concisão, é o assertivo ponto de partida para esta tarefa.  
   Os textos de laços de família são considerados verdadeiras obras-primas do conto brasileiro, alguns deles figuram na antologia “Os cem melhores contos brasileiros”. A temática, o apuro formal e a singularidade da prosa clariceana fascinam vários leitores desde que essa obra foi publicada em 1960. Um dos trunfos de Clarice é extrair da banalidade, do rotineiro, situações que desencadeiam um forte abalo na vida de seus personagens. Esse “abalo” configura no que designou-se "epifania", ou seja, uma revelação, momento em que a personagem tem um insight. Em laços de família o texto que melhor exemplifica a epifania é o conto “Amor” em que a dona de casa Ana tem sua rotina alterada após avistar um cego mascando chiclete. O zelo da protagonista para que tudo em sua casa, com o marido e os filhos corresse na mais perfeita ordem fizeram dela um ser mecânico, tal qual o movimento de mascar chiclete do cego. Todo o texto é repleto de simbologias, razão pela qual sua análise é sempre requisitada nos vestibulares. Outro conto de destaque é “Uma galinha” onde acompanhamos a sina de uma galinha que durante um certo período escapou de ir pra panela. Percebe-se uma tentativa de humanização da galinha, mesmo ela destinada a ser o que fatalmente era: uma galinha que iria servir de alimento mais cedo ou mais tarde. Entretanto, a “galinha de domingo”, ao por um ovo tem sua ida pra panela adiada. Sob os gritos da menina que presenciou o fato: “-Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!” (p. 32) Após isso ela “tornara-se a rainha da casa”, até cumprir o seu fatal destino.
    Certamente um dos melhores textos desta coletânea é “Feliz aniversário”, cuja narrativa aborda a comemoração dos oitenta e nove anos de uma matriarca, D. Anita, que passa a festa inteira na cabeceira da mesa fitando com horror a mediocridade encenada por sua própria família. É nesse texto que observamos que os laços de sangue não são suficientes para fazer brotar bons sentimentos. As famílias se desentendem, o egoísmo humano forma barreiras intransponíveis, daí vemos em “Feliz aniversário” noras que se detestam, irmãos forjando discursos ou mesmo não comparecendo à ocasião. A mesquinhez humana é evidente neste conto, por exemplo, uma das noras ostenta  arrogância, “esta vinha com seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles...” (p. 54) Como se nada daquilo fizesse sentido para a aniversariante que medita amargamente sobre seus próprios frutos, com exceção de um neto, Rodrigo, “carne do seu coração”. Um detalhe importante deste texto é a personagem Cordélia, assim como a filha do rei Lear, esta enxerga a verdade e prefere a mudez a cair na armadilha das palavras encenadas, ciente do amor, do seu segredo.

    Laços de família é seguramente um dos cartões de visita de Clarice Lispector, alguns críticos literários chegam a concordar que a Clarice do conto supera a romancista. Polêmicas à parte, Laços de família é leitura imprescindível para que vejamos o fiel retrato da natureza humana, além da criatividade de Clarice em situar suas personagens, seja presa aos laços afetivos ou familiarizadas com outra forma, que não a humana, sempre em busca de uma linguagem que revele a verdade do ser. Doravante a proximidade com os bichos, uma galinha, um cão ou a vida “silenciosa, lenta, insistente” do jardim Botânico.

domingo, 16 de outubro de 2016

Comentando o filme "Jovens adultos"

Charlize Theron em primorosa atuação
“Jovens adultos” é um filme sobre falta de maturidade. A protagonista desse drama com nuances cômicas é Mavis Gary, interpretada com maestria pela oscarizada Charlize Theron (Monster- Desejo assassino). Mavis é uma ghost writer de uma série “Young adult” que fora cancelada, entretanto ela precisa escrever o último capítulo. Sob pressão de seu editor e vivendo uma fase nada criativa, a página ainda em branco, Mavis, ao vasculhar sua mailbox, encontra um convite de felicitações pela chegada de um bebê, é a filha de Buddy Slade (Patrick Wilson), seu namorado dos tempos da escola. Apesar dos seus 37 anos, Mavis é tão imatura quanto as personagens da série da qual é autora. Toma para si o convite do email, ignorando totalmente a fase atual, o casamento bem resolvido do antigo namorado. Mavis é uma pessoa totalmente “sem noção”! É uma personagem que não sabemos se sentimos pena, ou raiva ou mesmo alguma estima pelas absurdas atitudes tipicamente “adolescentes”.
Roteirizado por Diablo Code (Juno), “Jovens adultos” possui diálogos sensacionais, a “falta de noção” de Mavis não parece um simples desvio de caráter da personagem, uma vez que ela possui um lado humano, tem um cachorro de estimação e quando reencontra um antigo colega de escola que fora vítima de um crime de ódio, toma empatia pelo moço e lança a questão, para o público: é mais doloroso o trauma físico, ou as neuroses que um especialista poderia resolver? Explico, a vítima do crime de ódio ficou com graves sequelas, como mobilidade reduzida e quase impotente.  O cúmulo da desorientação de Mavis é achar que a fase em que era a mais popular da escola era a sua melhor fase. Era nesse período em que descobrimos que ela era muito egoísta, deslumbrada pelo sucesso com os garotos e principalmente por Buddy, este no presente envolto em mamadeiras e feliz com sua mulher Bety, cujo motivo não é empecilho para Mavis fazer de tudo para reconquistar o antigo namorado. Inclusive ao ponto de se insinuar perante Bety e suas amigas. Para Mavis só o que ela pensa importa já que "o amor supera tudo" também "a sociedade aceita tudo", isso e outras projeções oriundas do universo unilateral e retrógrado de Mavis. 

A eficiente atuação de Charlize e o ótimo roteiro de Cody entregam um bom filme, destes que valem rever várias vezes. Há cenas impagáveis em que Mavis Gary munida de uma petulância que só os adolescentes ostentam, provoca o riso devido o absurdo que determinada atitude acarreta. Outra característica importante em Mavis é a preocupação com a aparência: salões de beleza e roupas sofisticadas fazem parte de sua maneira de se apresentar aos outros, já em sua casa entrega-se ao desleixo de modo geral, alimenta-se de enlatados, veste as velhas camisetas com estampas infantis e abusa de Coke. Interessante também o modo como Maves colhe “por acaso” diálogos de pessoas na rua e os insere na série da qual é ghost writer, encaixando-os devidamente no mundo pretensioso da fase juvenil. 

sábado, 8 de outubro de 2016

Criolo:rimas de superação e esperança

Criolo e as rimas de esperança de "Ainda há tempo"
  Um dos álbuns nacionais lançados neste ano que muito escuto é “Ainda há tempo”, do Criolo. Na verdade, trata-se de um relançamento, o álbum fora lançado há dez anos atrás, época em que o rapper designava-se Criolo Doido. O relançamento desse trabalho deve-se ao fato de Criolo ter se tornado grande nome da música brasileira após a ótima recepção de “Nó na orelha” em 2011 e pelo o sucessor “Convoque seu Buda” em 2014, ou seja, o álbum de 2006 era conhecido apenas pelos fãs mais antigos, aqueles do tempo em que Criolo não tinha expandido suas fronteiras musicais, mantinha-se fiel ao rap tradicional e se apresentava nas rinhas de MC's, eventos geralmente restritos a adeptos do gênero.

   Apesar de “Ainda há tempo”, versão 2016, conter apenas oito faixas, muito menos que o álbum de 2006, ele traz o essencial do Criolo em seu início, na periferia da Zona Sul Paulistana. Seria injusto que o público que acompanha o músico desde o sucesso de “Não existe amor em SP”, não tomasse conhecimento das pérolas musicais do Criolo das antigas. Certamente, alguns desses fãs das antigas preferem as versões do álbum original às novas versões super produzidas por feras da cena. Na verdade, não precisa ser fã de rap para gostar de Criolo, suas rimas são carregadas de humanidade, ou seja, verdadeiras filosofias de vida extraídas de uma realidade hostil, marcada pelo abandono que são as periferias de uma grande cidade. Muitas frases de Criolo ecoam em nossa mente e no álbum “Ainda há tempo” não falta material para isso: a própria faixa título já expressa a ideia de esperança, de uma crença de que a humanidade tem jeito, por mais que a realidade nos mostre tantas atrocidades e desrespeito à vida.  Se tem um artista que merece o título de “grande pensador contemporâneo”, esse alguém é Criolo. No referido álbum, as rimas criativas versam sobre ele ter encontrado sua salvação no rap, uma vez que muitos jovens acabam sucumbindo para o mundo do crime já que faltam oportunidades na periferia. Exemplo maior do poder de humanização da arte! Criolo no palco expurga suas convicções, expõe suas memórias e abre o coração, não raro o amor materno consta em suas rimas: “Eu respeito, ah como eu respeito/ amor de mãe não se escreve, aí não tem defeito/ seria tão bom se a mãe da gente não sofresse/ não ficasse doente e também não envelhecesse.” São versos da canção “É o teste”, faixa que abre o álbum e uma das melhores letras do rapper. Os recados são inúmeros: “Procure ser feliz, pobreza não é derrota”; “O que penso família, ainda nela acredito” e claro, o refrão: “É o teste, é o teste, é a febre, é a glória/ não se corromper pra nóis já é vitória.” Não posso esquecer de destacar a faixa “Vasilhame”, especificamente a mudança de um verso que Criolo, numa atitude humilde, reconhece que certas palavras ofendem e por isso alterou um verso considerado homofóbico: “os traveco tão ali, alguém via se iludir.” Na versão repaginada ficou: “O universo tá ai, alguém vai se iludir.” A faixa em questão versa sobre o abuso do álcool e o quanto isso pode ser prejudicial a saúde e favorável apenas aos donos das empresas de bebidas. Retomando o tema da homofobia, Criolo disse, certa vez, não me atenho ao contexto, uma das coisas mais certeiras dessa vida: “até parece que ser gay é defeito”. Seria bom se muitos artistas fossem tão bons no que fizessem e também fossem tão humanistas como Criolo, mas “ainda há tempo”!