Durante as aulas de
literatura do curso de letras, a professora sempre salientava que a literatura
era fundamental porque humaniza, incomoda, ou seja, nos desperta para uma
verdade camuflada pelo automatismo do nosso cotidiano. Todavia, não são todos
os textos literários que possuem tal capacidade de transcender nosso estado de
espírito, essa é uma qualidade que só as boas obras possuem. Aquelas em que as
palavras não apenas contam algo, mas nos tocam pela construção poética das
frases ou períodos. Existem aquelas obras que nos acompanham por toda a vida,
que volta e meia teremos a vontade de reler, não por alguma complexidade
linguística, mas porque a delicadeza, o lirismo está presente em cada capítulo
da narrativa.
Uma obra que veio a
se tornar um achado literário, não só para esse simplório leitor, é O filho de
mil homens, de Valter Hugo Mãe, um romance que abarca inúmeros elementos de maneira assertivamente construída. Valter Hugo Mãe
tece com maestria seu enredo, inicialmente, devido à concisão dos capítulos,
cada um apresentando um personagem central: o Crisóstomo; a anã; o Camilo,
entre outros a seguir, remete-nos ao formato do conto, entretanto, trata-se da
apresentação dos personagens em seus núcleos, para que no decorrer da narrativa
vejamos a construção dos laços afetivos em que se atarão alguns desses personagens. Como o
título da obra sugere, O filho de mil homens, ou seja, a temática do parentesco não se resume ao fator sanguíneo,mas é elevada a um alto grau do sentimento
de amor, de cuidado para com as pessoas que por alguma razão se cruzaram nessa
estória. Por esse motivo, o Crisóstomo, homem de quarenta anos, sozinho no
mundo que “Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado
de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos” (p.
19)sente-se enormemente realizado ao adotar o órfão Camilo. Além do fato de que
as personagens desse livro habitavam um vilarejo litorâneo, ou seja, eram
pessoas simples que viviam felizes com o que lhes era possível de realização.
Conforme afirmei ser
essa obra uma narrativa completa, ratifico apontando alguns elementos, pois
temos a poesia, o lirismo, sobretudo personificado em Crisóstomo que adota
Camilo e enamora-se pela rústica Isaura; O humor também aparece no tratamento das
mulheres da vila com a personagem anã, na verdade aquele humor que esconde
sentimentos nada virtuosos, há exemplo das mulheres que não aceitavam o fato de
que anã era capaz de ser feliz apesar de sua diminuta condição. Consta na
narrativa também, uma espécie de realismo mágico como no capítulo do velho que
tinha uma galinha gigante, “uma avestruz” como deduz a criança filha de
Rosinha, criada respondona, cujo velho, um dos raros personagens com posses, pretende
passar com ela o resto dos seus dias. Outro aspecto importante nessa obra, é o
humanismo, sobretudo na figura do personagem homossexual: o Antonino, cuja mãe
vive a duelar mentalmente seus sentimentos para com o filho. O trunfo nesse
núcleo é que o autor não recorre ao lugar-comum, que seria apresentar um
discurso limitado, redutivo, mas assertivamente toca no cerne da questão, ou
seja, apresenta um personagem vítima de inúmeras suposições sem fundamentos. Doravante
os moradores da vila teciam comentários maldosos calcados em seus próprios
preconceitos, sequer tinham vistos o Antonino a cometer atitudes
comprometedoras. A parte em que Antonino põe uma maquiagem na sofrida e apagada
Isaura, fazendo-a renascer,é quase uma epifania, apesar de que essa, a epifania
aparece em inúmeras passagens do livro.
Certamente, os
personagens do Crisóstomo e do Antonino são os mais cativantes, ambos são
dotados de um genuíno sentimento de amor ao próximo, cada qual ao seu modo , já
que “amar uma pessoa é o destino do mundo”, conforme aparece numa passagem
dessa obra belíssima que é O filho de mil homens. Nos momentos de tristeza,
sobretudo do Crisóstomo, ele caia para dentro de si, caia e levava também o
leitor, completamente caído de amores pela prosa poética de Valter Hugo Mãe,
uma prosa que aborda o reencontro da alegria de viver em companhia daqueles que
amamos. Os personagens viviam a sonhar com o amor: Crisóstomo queria um filho;
Isaura um marido; Antonino a aceitação de todos, começando por sua própria mãe,
ao final todos conquistaram isso e muito mais. Fica a dica de um ótimo presente de natal, O filho de mil homens é uma leitura fácil, porém cheia de encanto e criatividade, qualidades tão peculiares em Valter Hugo Mãe.
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