Editora Metanoia Páginas: 202 Ano: 2017 |
Experientia (O teatro de Roberto
Muniz Dias)
“Quando é
que a saudade daquilo que a gente não viveu passa?”
Tulipa Ruiz
“Escrever é
organizar os sentimentos perdidos.”
Marcelino Freire
Com uma produção
crescente que só ratifica o talento com as palavras, Roberto Muniz Dias entrega
o volume Experientia, coletânea composta por cinco peças teatrais. São elas: As
divinas mãos de Adam; Raroquerer haraquiri; A volta do cometa; Bonecxs
desalmadxs e Uma cama quebrada. Para efeito de síntese, comentarei sobre as
duas primeiras, o que não significa que as demais não sejam dignas de análise,
ao contrário, em cada uma nota-se o cuidado e afinco para com os elementos a
serem retratados. Da descrição do cenário à criação da personagem, em todos os
aspectos é notável o trabalho de concatenação empreendido, seja pela linguagem
sofisticada, que jamais sucumbe a termos abjetos, ou pela tramitação entre a
técnica tradicional e outros métodos
mais ousados, repletos de subjetivismo,
idiossincrasias.
A peça As divinas
mãos de Adam - que já foi encenada em São Paulo e Rio de janeiro – aborda, entre
outros aspectos, a impotência que aniquila um indivíduo, restrito a imobilidade
numa cama, vegetando. Não há relatos do que provocou a perda dos movimentos de
Stephen, apenas sua atual situação, além da cegueira. Numa tentativa de
resgatar o que sobrou de sua natureza, Stephen põe um anúncio de jornal à
procura de alguém que lhe preste serviços de masturbação, “ambos os sexos”.
Bate-lhe à porta o jovem imigrante Adam, munido pela necessidade e o medo do
desconhecido: “Mas... (com espanto) não devo usar luvas? (Dúvida atordoante)”
(p. 11) Percebe-se, pelo livro o quanto o texto fora criado especialmente para
fins de encenação, ou seja, a sonoplastia, a feição da personagem que antecede ao leitor o momento da fala,
praticamente joga o leitor para o teatro. Ou antes confirma o forte teor
imagético da literatura de Muniz Dias. Talvez a experiência como romancista
explique a maneira como gradativamente, Muniz Dias conduz os diálogos em As
divinas mãos de Adam, ou seja, tudo vai aos poucos se revelando, os personagens
se dando a conhecer com uma intensidade à flor da pele que revela as agonias
que permeiam suas vidas. Os personagens, ao dividirem suas experiências,
procuram resgatar as poucas alegrias que algum dia tiveram, o que traz beleza
ao texto. Outro fator que torna bela essa estória (triste, assim como as
melhores estórias) é a construção da empatia entre duas personagens tão
distintas, mas que possuem a mesma abertura para mergulhar na busca do real e
se desprender de qualquer amarra ideológica. A juventude e inexperiência de
Adam não o impede de acolher os sentimentos que emanam de Stephen. Certamente,
As divinas mãos de Adam é um dos mais belos trabalhos do escritor piauiense. E
como filosofia pouca é bobagem, o inteligente diálogo entre Stephen e Adam é
confrontado com a chegada de Rita, irmã daquele, doravante a peça atinge o
clímax e caminha para um sublime final.
Já a segunda peça do
volume Experientia, “Raroquerer haraquiri”, é um monólogo inspirado no romance
A teia de Germano, um texto predominantemente metalinguístico. Carregado de
metáforas que ora recorrem a referências culturais japonesas, ora a
problematização da literatura. Como produzir o melhor texto? Buscando o ideal
de uma infância desejada? Esperando que o seu amor também compartilhe o amor
para com os livros, ou seja, tenha afinidade? É um texto que fala,
especialmente, a propensos escritores ou aos apreciadores das artes, enfim, aos
sensíveis. Não esqueçamos que Muniz Dias tem a mesma formação de Clarice
Lispector e de Caio Fernando Abreu, ou seja, não apenas esse fator os coloca
num mesmo patamar, as obsessões literárias são as mesmas. O mesmo mergulho no
insondável, a verve filosófica, as personagens inaptas à realidade, entre
outros aspectos, colocam Muniz Dias trilhando corajosamente esse árduo caminho.
É a sua via crucis, só para lembrar alguma passagem clariceana em sua visceral
obra.
Contando com uma cena única, Raroquerer
haraquiri mergulha fundo no sentimento universal que é a angústia, uma vez que
o personagem é um escritor, ou seja, categoria possuidora de um múltiplo
universo de ideias e sempre a trabalhar a melhor maneira de narrar poeticamente
tais ideias ou vivências para enfim, compartilhar com os possíveis leitores. O
interessante nesse monólogo, é que apesar do personagem chegar às raias do
desespero, indagando sobre as incertezas do seu futuro como escritor, ele
consegue criar um texto nos moldes do que é considerado um conto tradicional. Trazendo
referências clássicas, extraindo uma fantasia da infância “que os anos não
trazem mais” e evocando um belo final epifânico para sua short storie de cunho infanto-juvenil.
Assim como As divinas mãos de Adam, essa peça também tematiza os impasses que a
busca de uma saudosa lembrança implica. Seja ao resgatar um hábito de um ente
querido (falecido) ou em guardar objetos que testemunhem algo vivido de bom,
nota-se que em ambos os textos as personagens, embora de modo implícito,
retomam os conceitos de Santo Agostinho acerca da ultrapassagem do tempo
presente, ou seja, as tentativas de resgatar as memórias mais revelam a
impossibilidade do presente, que restauram
o sentimento de outrora.