terça-feira, 31 de outubro de 2017

O teatro de Roberto Muniz Dias

Editora Metanoia
Páginas: 202
Ano: 2017


Experientia (O teatro de Roberto Muniz Dias)

             “Quando é que a saudade daquilo que a gente não viveu passa?”
                                                                                               Tulipa Ruiz

              “Escrever é organizar os sentimentos perdidos.”
                                                                                       Marcelino Freire

   Com uma produção crescente que só ratifica o talento com as palavras, Roberto Muniz Dias entrega o volume Experientia, coletânea composta por cinco peças teatrais. São elas: As divinas mãos de Adam; Raroquerer haraquiri; A volta do cometa; Bonecxs desalmadxs e Uma cama quebrada. Para efeito de síntese, comentarei sobre as duas primeiras, o que não significa que as demais não sejam dignas de análise, ao contrário, em cada uma nota-se o cuidado e afinco para com os elementos a serem retratados. Da descrição do cenário à criação da personagem, em todos os aspectos é notável o trabalho de concatenação empreendido, seja pela linguagem sofisticada, que jamais sucumbe a termos abjetos, ou pela tramitação entre a técnica tradicional e outros  métodos mais  ousados, repletos de subjetivismo, idiossincrasias.
   A peça As divinas mãos de Adam - que já foi encenada em São Paulo e Rio de janeiro – aborda, entre outros aspectos, a impotência que aniquila um indivíduo, restrito a imobilidade numa cama, vegetando. Não há relatos do que provocou a perda dos movimentos de Stephen, apenas sua atual situação, além da cegueira. Numa tentativa de resgatar o que sobrou de sua natureza, Stephen põe um anúncio de jornal à procura de alguém que lhe preste serviços de masturbação, “ambos os sexos”. Bate-lhe à porta o jovem imigrante Adam, munido pela necessidade e o medo do desconhecido: “Mas... (com espanto) não devo usar luvas? (Dúvida atordoante)” (p. 11) Percebe-se, pelo livro o quanto o texto fora criado especialmente para fins de encenação, ou seja, a sonoplastia, a feição da personagem que  antecede ao leitor o momento da fala, praticamente joga o leitor para o teatro. Ou antes confirma o forte teor imagético da literatura de Muniz Dias. Talvez a experiência como romancista explique a maneira como gradativamente, Muniz Dias conduz os diálogos em As divinas mãos de Adam, ou seja, tudo vai aos poucos se revelando, os personagens se dando a conhecer com uma intensidade à flor da pele que revela as agonias que permeiam suas vidas. Os personagens, ao dividirem suas experiências, procuram resgatar as poucas alegrias que algum dia tiveram, o que traz beleza ao texto. Outro fator que torna bela essa estória (triste, assim como as melhores estórias) é a construção da empatia entre duas personagens tão distintas, mas que possuem a mesma abertura para mergulhar na busca do real e se desprender de qualquer amarra ideológica. A juventude e inexperiência de Adam não o impede de acolher os sentimentos que emanam de Stephen. Certamente, As divinas mãos de Adam é um dos mais belos trabalhos do escritor piauiense. E como filosofia pouca é bobagem, o inteligente diálogo entre Stephen e Adam é confrontado com a chegada de Rita, irmã daquele, doravante a peça atinge o clímax e caminha para um sublime final.
  Já a segunda peça do volume Experientia, “Raroquerer haraquiri”, é um monólogo inspirado no romance A teia de Germano, um texto predominantemente metalinguístico. Carregado de metáforas que ora recorrem a referências culturais japonesas, ora a problematização da literatura. Como produzir o melhor texto? Buscando o ideal de uma infância desejada? Esperando que o seu amor também compartilhe o amor para com os livros, ou seja, tenha afinidade? É um texto que fala, especialmente, a propensos escritores ou aos apreciadores das artes, enfim, aos sensíveis. Não esqueçamos que Muniz Dias tem a mesma formação de Clarice Lispector e de Caio Fernando Abreu, ou seja, não apenas esse fator os coloca num mesmo patamar, as obsessões literárias são as mesmas. O mesmo mergulho no insondável, a verve filosófica, as personagens inaptas à realidade, entre outros aspectos, colocam Muniz Dias trilhando corajosamente esse árduo caminho. É a sua via crucis, só para lembrar alguma passagem clariceana em sua visceral obra.
  Contando com uma cena única, Raroquerer haraquiri mergulha fundo no sentimento universal que é a angústia, uma vez que o personagem é um escritor, ou seja, categoria possuidora de um múltiplo universo de ideias e sempre a trabalhar a melhor maneira de narrar poeticamente tais ideias ou vivências para enfim, compartilhar com os possíveis leitores. O interessante nesse monólogo, é que apesar do personagem chegar às raias do desespero, indagando sobre as incertezas do seu futuro como escritor, ele consegue criar um texto nos moldes do que é  considerado um conto tradicional. Trazendo referências clássicas, extraindo uma fantasia da infância “que os anos não trazem mais” e evocando um belo final epifânico para sua short storie de cunho infanto-juvenil. Assim como As divinas mãos de Adam, essa peça também tematiza os impasses que a busca de uma saudosa lembrança implica. Seja ao resgatar um hábito de um ente querido (falecido) ou em guardar objetos que testemunhem algo vivido de bom, nota-se que em ambos os textos as personagens, embora de modo implícito, retomam os conceitos de Santo Agostinho acerca da ultrapassagem do tempo presente, ou seja, as tentativas de resgatar as memórias mais revelam a impossibilidade do presente, que restauram  o sentimento de outrora.