segunda-feira, 19 de junho de 2017

Ciranda de Pedra

Edição recente da Companhia da letras
        Certamente o título “Ciranda de pedra” pode parecer familiar para muitos devido à adaptação para novelas da Rede Globo. O fato é que a leitura do romance de Lygia Fagundes Telles é de fundamental importância para ratificarmos o valor da literatura brasileira escrita por mulheres. Sabemos que Lygia é “peixe grande”, do mesmo time de Clarice, Hilda Hilst, Raquel de Queiroz, etc. Ainda assim se faz necessário levar  alguns leitores à sua obra, pois com a acirrada concorrência do mercado editorial é provável que ela perca espaço para as modinhas literárias da vez.
   Ciranda de pedra é um romance de formação onde acompanhamos a personagem Virginia desde a fase pré-adolescente até a maioridade. Essa personagem é fruto de um “lar desfeito”, ou seja, ela nasceu  de um adultério – assunto considerado tabu na primeira metade do século XX- sua infância é muito penosa, pois vivendo com uma mãe tida como louca, com um homem, o qual ela chama de tio, mais Luciana, uma espécie de empregada, num ambiente com parcos recursos, resta-lhe alargar sua imaginação e prestar atenção em insetos, em outros animais ou mesmo em seres inanimados. Aliás, o agravante dessa situação é que em contrapartida, suas irmãs e seu “pai” habitam uma confortável casa, onde todos recebem a devida atenção, dentro de casa e também com alguns vizinhos, ao passo que ela conversa com uma mãe desorientada e também suspeita do interesse de Luciana pelo patrão. Virginia é tida como um patinho feio, sem ao menos saber a verdade dos fatos, uma vez que sua pouca idade servira de desculpa para essa omissão.
   Um traço marcante na escrita desse romance são as diversas frases aspeadas que são, na maior parte das vezes, o pensamento de Virginia ou lembranças de frases ditas por suas irmãs. Na verdade todo o romance é narrado pela perspectiva de Virginia, uma protagonista astuta e com uma imaginação muito aguçada. A descrição de suas irmãs não deixa de ser interessante: Bruna usa a Bíblia Sagrada como lema de sua vida, devido a isso condena a atitude da mãe; Já Otávia é descrita com ares românticos, desde a aparência até suas atitudes que supõem uma inconsequência. Vale ressaltar que o título Ciranda de pedra tanto alude a uma fonte com uma roda de anões, localizada numa área da casa de suas irmãs, como também ao grupo formado por Bruna, Otávia, Afonso, Conrado e Letícia, estes últimos vizinhos de infância que no decorrer da adolescência acabam por fortalecer os laços de afeto: Bruna enamora-se de Afonso e Otávia de Conrado. Quanto à Virgínia, esta nutre um amor por Conrado que o acompanha em grande parte do romance.
   Ciranda de pedra é uma narrativa inquietante, o leitor é levado a torcer por uma volta por cima na trajetória de Virginia, não que ela seja uma heroína que sofre horrendos castigos, ela jamais demonstra fraqueza, apesar de ter sofrido tanta rejeição. Aliás, essa volta por cima acontece quando ela retorna à casa das irmãs após o internato – por escolha própria- ou seja, a Virgínia de aproximadamente vinte anos retorna mais astuta e descobre a verdadeira face das pessoas que a desprezaram em sua infância. Trata-se de um romance imperdível, Lygia Fagundes Telles é um dos nossos maiores tesouros literários.

domingo, 4 de junho de 2017

A Bela e a Fera

Edição da Editora Rocco da coletânea 
    A Bela e a fera é um pequeno volume de contos de Clarice Lispector. Nessa obra encontramos contos escritos antes de sua grande estreia com o romance Perto do coração selvagem, sendo que a estes contos, somam-se mais dois escritos em 1977: Um dia a menos e A bela e fera ou A ferida grande demais. Trata-se de uma coletânea que apresenta a Clarice “espiritual”, aquela que escreve densos e belos textos, e também a escritora mais resoluta, despudorada, que escreve “com aponta dos dedos” segundo os apontamentos de Vilma Arêas.
  Como exemplo de texto pertencente a grande literatura  clariceana podemos citar “Gertrudes pede um conselho”, neste conto acompanhamos a trajetória de uma adolescente em busca de uma vida mais significativa, na qual ela fosse mais compreendida ou realizada, apesar da pouca idade para grandes pretensões. O que atordoava Gertrudes (apelidada de Tuda) era a banalidade do cotidiano, a qual sua família simplesmente integrava-se sem questionamentos ao passo que ela esperava por grandes acontecimentos. Era uma personagem ávida pelo extraordinário, curiosa, que não aceitava ir vivendo sem questionar a razão, as crenças, Deus, etc. Numa esperança de aplacar suas grandes dúvidas, Tuda escreve cartas a uma espécie de conselheira de revistas, chegando, inclusive, a ser chamada para conversar no escritório da conselheira, doravante a narradora ora adere às perspectivas de Tuda, ora da conselheira. Por vezes temos a impressão que está havendo um duelo entre ambas, pois Tuda embora seja a paciente, é uma moça esperta, ou perspicaz, como a doutora percebera. Foi uma frustração para Tuda o encontro com a conselheira, pois simplesmente: “Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!”(p.24)Como Tuda sairá dessa? A leitura do conto na íntegra assim como do livro toda irá surpreender!
  Já como exemplo de texto escrito “com a ponta dos dedos”, podemos citar “Um dia a menos”, um dos últimos textos que Clarice escreveu, cujo manuscrito fora organizado pela amiga Olga Boreli. No conto temos uma narradora-personagem que já inicia questionando sobre a morte: “Eu desconfio que a morte vem. Morte?”(p.89) Clarice é especialista em criar personagens femininas que vivem em busca de algo maior, sublime, e a solidão é uma eficaz maneira de se alcançar uma compreensão de si e da vida mesmo. Entretanto, nos contos de 1974 em diante, Clarice deixava transparecer certa impaciência, o que resultava em personagens cômicas ou mesmo bizarras. Margarida Flores, a narradora desse conto relata sobre o infame apelido de infância: “Margarida Flores de Enterro”; sobre sua solidão insuportável, uma vez que sua empregada passaria o mês de férias e ela esquecia-se dos modos de organização da casa. Havia a espera que o telefone tocasse, ela era uma mulher sozinha de trinta anos. Todavia, após várias tentativas de preencher as horas, o telefone toca e Margarida tem a possibilidade de dividir com alguém os seus pensamentos, o que ela fizera de si. Essa situação, ou seja, a conversa ao telefone, é uma cena cômica onde a narradora conversa educadamente até ir as raias da impaciência e desligar “o aparelho” como dizia sua interlocutora que era uma idosa procurando alguém que Margarida Flores sequer sabia da existência-era praticamente um trote.
  O conto que encerra a coletânea, é o texto que intitula esse volume: A bela e a fera ou A ferida grande demais,um texto onde Clarice aborda a questão social, especificamente a temática das diferenças de classe,no qual temos a narradora-personagem representando a classe alta e um mendigo com uma ferida enorme na perna como pertencente a classe dos marginalizados.O encontro de Carla de Souza e Santos com o mendigo provocara-lhe um abalo em sua rotina de mulher rica e elegante, situação parecida a da personagem de outro texto de Clarice: Perdoando Deus, onde sua personagem estava a contemplar e agradecer pela vida e de repente aparece-lhe a feiura do mundo personificada em um rato morto. Ambos os textos são esplêndidos pelo fato de Clarice extrapolar as fronteiras do maniqueísmo, aliás, nestes contos Clarice expõe um certo grau de empatia com as coisas que estão do nosso lado e, por convenção ou egoísmo tendemos a ignorar. Como a exemplo de sua personagem rica e elegante que após tormentos e reflexões chegou ao mesmo nível do mendigo da ferida grande, Concluímos com a constatação de Carla:
“_ Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...” (p.108)