domingo, 4 de junho de 2017

A Bela e a Fera

Edição da Editora Rocco da coletânea 
    A Bela e a fera é um pequeno volume de contos de Clarice Lispector. Nessa obra encontramos contos escritos antes de sua grande estreia com o romance Perto do coração selvagem, sendo que a estes contos, somam-se mais dois escritos em 1977: Um dia a menos e A bela e fera ou A ferida grande demais. Trata-se de uma coletânea que apresenta a Clarice “espiritual”, aquela que escreve densos e belos textos, e também a escritora mais resoluta, despudorada, que escreve “com aponta dos dedos” segundo os apontamentos de Vilma Arêas.
  Como exemplo de texto pertencente a grande literatura  clariceana podemos citar “Gertrudes pede um conselho”, neste conto acompanhamos a trajetória de uma adolescente em busca de uma vida mais significativa, na qual ela fosse mais compreendida ou realizada, apesar da pouca idade para grandes pretensões. O que atordoava Gertrudes (apelidada de Tuda) era a banalidade do cotidiano, a qual sua família simplesmente integrava-se sem questionamentos ao passo que ela esperava por grandes acontecimentos. Era uma personagem ávida pelo extraordinário, curiosa, que não aceitava ir vivendo sem questionar a razão, as crenças, Deus, etc. Numa esperança de aplacar suas grandes dúvidas, Tuda escreve cartas a uma espécie de conselheira de revistas, chegando, inclusive, a ser chamada para conversar no escritório da conselheira, doravante a narradora ora adere às perspectivas de Tuda, ora da conselheira. Por vezes temos a impressão que está havendo um duelo entre ambas, pois Tuda embora seja a paciente, é uma moça esperta, ou perspicaz, como a doutora percebera. Foi uma frustração para Tuda o encontro com a conselheira, pois simplesmente: “Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!”(p.24)Como Tuda sairá dessa? A leitura do conto na íntegra assim como do livro toda irá surpreender!
  Já como exemplo de texto escrito “com a ponta dos dedos”, podemos citar “Um dia a menos”, um dos últimos textos que Clarice escreveu, cujo manuscrito fora organizado pela amiga Olga Boreli. No conto temos uma narradora-personagem que já inicia questionando sobre a morte: “Eu desconfio que a morte vem. Morte?”(p.89) Clarice é especialista em criar personagens femininas que vivem em busca de algo maior, sublime, e a solidão é uma eficaz maneira de se alcançar uma compreensão de si e da vida mesmo. Entretanto, nos contos de 1974 em diante, Clarice deixava transparecer certa impaciência, o que resultava em personagens cômicas ou mesmo bizarras. Margarida Flores, a narradora desse conto relata sobre o infame apelido de infância: “Margarida Flores de Enterro”; sobre sua solidão insuportável, uma vez que sua empregada passaria o mês de férias e ela esquecia-se dos modos de organização da casa. Havia a espera que o telefone tocasse, ela era uma mulher sozinha de trinta anos. Todavia, após várias tentativas de preencher as horas, o telefone toca e Margarida tem a possibilidade de dividir com alguém os seus pensamentos, o que ela fizera de si. Essa situação, ou seja, a conversa ao telefone, é uma cena cômica onde a narradora conversa educadamente até ir as raias da impaciência e desligar “o aparelho” como dizia sua interlocutora que era uma idosa procurando alguém que Margarida Flores sequer sabia da existência-era praticamente um trote.
  O conto que encerra a coletânea, é o texto que intitula esse volume: A bela e a fera ou A ferida grande demais,um texto onde Clarice aborda a questão social, especificamente a temática das diferenças de classe,no qual temos a narradora-personagem representando a classe alta e um mendigo com uma ferida enorme na perna como pertencente a classe dos marginalizados.O encontro de Carla de Souza e Santos com o mendigo provocara-lhe um abalo em sua rotina de mulher rica e elegante, situação parecida a da personagem de outro texto de Clarice: Perdoando Deus, onde sua personagem estava a contemplar e agradecer pela vida e de repente aparece-lhe a feiura do mundo personificada em um rato morto. Ambos os textos são esplêndidos pelo fato de Clarice extrapolar as fronteiras do maniqueísmo, aliás, nestes contos Clarice expõe um certo grau de empatia com as coisas que estão do nosso lado e, por convenção ou egoísmo tendemos a ignorar. Como a exemplo de sua personagem rica e elegante que após tormentos e reflexões chegou ao mesmo nível do mendigo da ferida grande, Concluímos com a constatação de Carla:
“_ Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...” (p.108)   

2 comentários:

  1. Edu, Clarice somos nós! Estou com saudades de sua alma transparente. Bjs, sucesso nas batalhas da vida.

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  2. Obrigado, Sr. Estapafombio! Bem observado, Clarice somos nós mesmos. Temos outras boas escritoras, como a lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz, etc, mas é difícil ficar muito tempo sem ler algo de Clarice. Abçs!! Sucesso pra vc tbm.

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