domingo, 25 de fevereiro de 2018

Ray of light, a masterpiece

No último dia 20 de fevereiro uma obra prima musical completou 22 anos: o disco Ray of light, da cantora Madonna. Trata-se de uma espécie de trabalho arrebatador, que consegue agradar a crítica especializada e aos fãs, sendo que esses costumam aprovar tudo que seu artista favorito produz. Já ouve quem perguntasse a Madonna que "raio" caiu sobre ela para que ela criasse uma obra tão fascinante quanto esse álbum. Uma das razões, certamente está ligada à maternidade, uma vez que pouco antes do surgimento do Ray of light ela dera a luz a sua primeira filha, Lourdes Maria. Muitas das canções desse álbum são repletas de referências à filha, canções de arranjos ternos como "Litlle star" ou a ultra dançante "Nothing really maters". As letras simples de Madonna conseguem comover os ouvintes, ao passo que os arranjos eletrônicos produzidos por William Orbit, trazem o tom de vanguarda para uma obra de alcance popular. Não é preciso ser fã de Madonna para sucumbir aos vocais intensos e que convidam à meditação de "Frosen", música que possui um videoclipe fascinante. E o que dizer da música que intitula o álbum? Que vibe positiva! Uma explosão de energia que pulsa rumo ao infinito, tamanha é a sensação de felicidade que essa canção traz - a mim que pulo pelos cômodos da casa arranhando a língua de Shakespeare- todavia há canções do Ray of light mais fáceis de cantar, como a faixa sombria que abre o álbum: Drowned world/Substitute for love.
Esse aclamado álbum rendeu a Madonna diversos prêmios, incluindo quatro Grammys, e sempre figura em listas de melhores álbuns de uma década, de um artista, etc. Quando um trabalho soa muito pessoal, inerente a quem o produz, é quase certo que as pessoas comprem essa ideia. Como se uma verdade irremediável estivesse esperando a hora certa de ser revelada. No caso de Madonna, as verdades oriundas da"descoberta da maternidade". Já no século XXI, artistas como Adele e Amy Winehouse expurgaram suas decepções amorosas na concepção de 21 e Back 2 Black, respectivamente. Nem é preciso dizer o sucesso que foi, e são, estes discos. Claro que isso não é algo inédito, apenas são fatos musicais do período em que vivo e acompanho, ao longo da história os artistas inevitavelmente fizeram o mesmo que Adele ou Amy Winehouse. o fato é que quando uma obra alia verdade pessoal e técnica - Madonna é doutora nesse quesito- é certo que o sucesso virá. Ray of light é o tipo de obra que se torna melhor a cada audição, um ponto alto na discografia de Madonna. A cantora possui um vasto acervo musical, todavia há discos que foram menosprezados pela crítica e pelos fãs também, por exemplo o M.D.N.A, de 2012, que teve até turnê passando pelo Brasil. E esse álbum de 2012 tem até as incríveis "Love spent" e "I'm sinner". É um bom disco. Não chega aos pés do Ray of light, óbvio. O disco de 1998 é completo. Encanta, ferve e emociona a cada ouvida.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Forever, Spice Girls

Forever- ano 2.000
Gravadora- Virgin Records
  Quem era adolescente nos anos noventa, certamente acompanhou o sucesso provocado por cinco meninas inglesas: as Spice Girls. Elas revolucionaram a música pop, arrebatando fãs no mundo todo e souberam aproveitar bem essa fase ao colocarem sua imagem em diversos produtos que iam de câmeras fotográficas a bonecas, isso sem contar no filme Spice World, uma narrativa comum apenas pra contar a rotina das meninas que queriam ser “elas mesmas” mas sentiam-se presas aos compromissos impostos pelo sucesso, ou seja, mais um produto pra faturar na onda desse fenômeno pop. Bem, o resto os fãs já sabem, esse sucesso não se manteve logo que uma das integrantes, Geri Halliwel, agora Horner, caiu fora alegando diferenças entre elas. O grupo tentou seguir só com as quatro, mas cada uma acabou investindo na carreira solo.  
  A fase com apenas quatro integrantes não foi acompanhada por mim, fã das cantoras de carteirinha, fato que atribuo por não ter acesso à internet na época, começo dos anos 2.000 e também porque talvez eu estivesse acompanhando o sucesso de Britney Spears ou Christina Aguilera, isso sem NEVER abandonar Madonna, a melhor artista de todas. Então, passei batido pelo álbum “Forever”, sim, um título no mínimo irônico, pois as cantoras não continuariam com o quarteto, apesar de afirmarem em seus shows que seguiriam sim “forever”, apesar dos tabloides ingleses anunciarem o fim do grupo. Inclusive nesse álbum há uma canção, Teel me why, que muitos atribuem a debandada de Geri, ou seja, como se fosse uma indireta das meninas à integrante que abandonara o grupo sem maiores explicações:

So tell me why – oh why
Did we end up this way
When we tried – we tried
To make everything ok
Teel me why – oh why
Did you feel you couldn’t stay
When we coud have stayed together
But you wanted it this way


  O disco “Forever” difere dos antecessores em muitos aspectos, sobretudo na sonoridade, que passa a ser menos eclética – o Spice World tinha elementos de música latina, disco, jazz, entre outros- aqui as canções são em sua maioria baladas lentas e canções de R&B, tal o som de grupos como o extinto Destiny Child ou TLC, o que muitos críticos e fãs definiram como um som “americanizado”. Isso não quer dizer que Forever seja um álbum esquecível, ao contrário, esse disco traz baladas incríveis e aquele pop à la Spice como Holler, primeira música de trabalho na ocasião do lançamento. Sem falar que nele podemos assimilar melhor o vocal das moças, pra constatar, claro, que Melanie C é muito afinada e que nesse quesito a Ginger não fez muita falta. Em Forever Melanie B investe mais em seus rappers dando aquele up em canções como Weekend love e Right Back at ya e o que dizer da voz doce da Emma Bunton? Já Victoria pode não ser uma boa vocalista, mas seu estilo e empolgação são incontestáveis para o Girl power!  Forever é um disco viciante, deveria ser melhor aproveitado – apenas quatro canções dele estão incluídas no Greatest hits das Spice – inúmeras são as possibilidades de hits que renderiam, principalmente as baladas românticas, como Time goes by, por exemplo. E já que as Spice estão ensaiando um retorno, nada como escutá-las em Forever, já que os hits dos dois discos anteriores sempre tocam em rádios adulto-contemporâneas ou em diversas ocasiões, afinal elas chegaram a ser comparadas aos Beatles, então seus hits jamais serão esquecidos. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

A gente mora no agora, de Paulo Miklos

A gente mora no agora- 2017
   Um dos trabalhos musicais mais surpreendentes do ano passado é o álbum “A gente mora no agora” do ex-integrante do Titãs, Paulo Miklos, trata-se de um verdadeiro alento num cenário musical onde acaba predominando fenômenos do sertanejo (sofrência), funk, sertanejo-universitário entre outros estilos que pouco agregam à memória musical da famigerada MPB. É fato que Paulo Miklos possui vasta experiência na música, todavia o fato dele trabalhar um álbum e trazer bons resultados como é o caso desse incensado A gente mora no agora é de grande relevância em tempos em que os haters blasfemam contra Anita, Pablo Vittar, os milhares de MC,s sem sequer pesquisar sobre a democrática cena musical, resumindo: creem que a MPB está restrita a estes fenômenos e que a glória musical ficou num distante passado, ignoram que nomes como Gal Costa vai muito bem, obrigada, com seu deslumbrante DVD estratosférica ao vivo, por exemplo.
   O trunfo de A gente mora no agora é a sua pluralidade, que por sua vez está atrelada às parcerias que vão de compositores oitentistas às últimas revelações, ou seja, todas as faixas foram compostas em parcerias com músicos que vão de Guilherme Arantes a Tim Bernardes, de Arnaldo Antunes a Silva, além de cantoras da atual safra como a musa original Céu, a jovem Mallu Magalhães e  a rapper Lurdez da Luz. Esse projeto de Miklos rendeu bons frutos, sua parceria com Nando Reis, a música “Vou te encontrar” entrou direto na trilha sonora da novela O outro lado do paraíso, trama que está dando o que falar, como toda novela global das 21 horas, repletas de clichês, mas isso é outra ideia... O fato é que a canção é deveras radiofônica, é uma composição intimista, triste, mas cheia de esperança, o oposto de “País elétrico”, feita em parceria com Erasmo Carlos e que denota um teor irônico, satírico e até corrosivo por tratar-se de uma constatação real de que no Brasil caem muitos raios, perante isso o refrão entoa:
Raio que parta
O mentiroso
Arrogante e vaidoso
Sociopata
Rei da mentira
Um projeto de bufão
Um bosta sem noção
Um nefasto cidadão
   
   Ao cantarmos esse refrão  imediatamente nos vem à cabeça esses sujeitos que dizem administrar o país, mas só administram em causa própria, restando a nós, sofridos brasileiros,  engolir goela abaixo, segurando na dignidade pra não explodir. País elétrico é uma canção que nos remete ao grupo Titãs, pelo teor de crítica social tão característico à rebeldia questionadora do rock. Outra canção que vale destacar é a despretensiosa “Não posso mais”, composição de Mallu Magalhães que aqui reforça o mesmo embalo de sua colaboração para o Estratosférica, da cantora Gal Costa. Cabe lembrar que ambos os trabalhos, tanto o A gente mora no agora, quanto Estratosférica, possuem o mesmo conceito, celebram o momento presente, sem esquecer o passado, antes fazem uma ponte com o futuro: trazem artistas que tiveram seu apogeu e também artistas que podem ainda, quiçá, criar algo primoroso, já que estão aí, em plena atividade. É o momento em que se está vivendo que importa celebrar nesses dois álbuns, doravante muitos dos responsáveis pela realização de obras tão magníficas são profissionais como : Pupilo, Marcus Preto, Céu, entre outros, desse modo quem curtiu o álbum da Gal, certamente apreciará o LP ( o fascínio por vinil) do Paulo Miklos, um disco que não tem como não gostar à primeira ouvida. E mais: não dar vontade pular nenhuma faixa, pois cada uma nos conquista, seja pelo arranjo frenético - o frevo de "deixar de ser alguém"- ou pelo lirismo de "Princípio ativo" e "Eu vou". 


sábado, 27 de janeiro de 2018

A forma da água

Sally Hawkins em cena de A forma da água
   Sem dúvidas, o filme A forma da água é um dos melhores entre os que concorrem ao Oscar desse ano. Foi essa produção que trouxe de volta o prestígio de Guillermo Del Toro, anteriormente em baixa devido a produções fracas e esquecíveis como A colina escarlate. Em A forma da água, Del Toro apresenta elementos sempre presentes em sua filmografia, como o apreço por monstros, a exemplo de seu filme mais cultuado: O labirinto do fauno. No indicadíssimo ao Oscar, acusado de plágio e ousado por conter um certo erotismo “The shape of water” ou em  português mesmo, A forma da água, há uma criatura que podemos chamar de homem- peixe (?), que fora capturada pelos americanos na Amazônia, nessa história que se passa na época da Guerra fria, onde os Estados Unidos  e a Rússia viviam sob forte e bélica rivalidade.
   Em meio a tensão desse período, uma faxineira muda, interpretada por Sally Hawkins se sentirá  atraída pelo “monstro”, já que este também não fala e seria tido como uma aberração pela sociedade, sempre preocupada em dominar o mundo e a própria natureza, ou seja, desse modo para o “homem-peixe”, ninguém, exceto os profissionais que estudam essas espécies, poderia nutrir alguma simpatia por tal “monstro”.  Todavia, a curiosidade de Elisa, a faxineira vivida por uma inspirada Sally Hawkins, resvala para o mais puro dos sentimentos: o amor. Doravante ela lançará meios de interação (apenas com a linguagem de sinais) com o “monstro”, centro da disputa entre um sádico segurança americano, interpretado magistralmente por Michael Shannon e o cientista Bob – Dimitri interpretado por Michael Stuhlbarg, este também em boa atuação. No decorrer da narrativa, o espectador perceberá quem realmente é o monstro, ou seja, óbvio que menos uma espécie de homem- peixe que uma própria criatura ciente que fora feita “a imagem e semelhança do Criador”, como fala o prepotente e ameaçador personagem de Michael  Shannon às faxineiras Elisa e Zelda, personagem de Octavia Spencer, o típico personagem que Octavia costuma interpretar: falastrona, amigável e com um quê de comicidade, esta, é amiga de Elisa assim como o vizinho da mocinha: Giles, vivido por Richard Jenkins.

   Impressiona como nessa fábula, onde temos uma criatura desprovida do que é belo, ao mesmo tempo possua uma imensa beleza presente tanto na entrega da personagem de Sally, merecidamente indicada ao Oscar de melhor atriz, como na fotografia composta por tons de verde ou azul, bem como o fiel retrato dos anos sessenta  personificado nos carros, na arquitetura, no vestuário e tudo o mais. Além da trilha sonora ser um deslumbre! Contando até com uma canção de Carmem Miranda. Convém ressaltar que o mais belo em A forma da água é a atuação de Sally Hawkins, que lança mão de uma expressividade absurda munida apenas de gestos, expressões e do semblante sonhador e amoroso com que conduz seu romance até o fim dessa fábula. Sally já havia sido indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por Blue Jasmine, agora conseguiu um papel em que seu talento foi comprovado, uma vez que em outros filmes era geralmente subaproveitado. Ela merece vencer na categoria de melhor atriz. E claro, Del Toro realizou um filme completo: uniu realidade e fantasia expondo virtudes e fraquezas humanas de uma maneira em que tudo se encaixe seja nas cenas que tematizam a guerra fria ou no cotidiano da sublime Elisa.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende

1° edição, Editora Alfaguara, 2016
  O romance Outros cantos, de Maria Valéria Rezende é uma narrativa realizada em primeira pessoa onde a protagonista delineia uma série de reminiscências na qual predominam sua estadia num povoado do sertão nordestino chamado Olho D’água. Trata-se de uma leitura muito fluida, pois é narrado com uma simplicidade e coerência, embora vez por outra o leitor esbarre em algum vocábulo peculiar, pertencente ao dialeto regional do lugar rememorado.
   O sugestivo título Outros cantos alude aos diversos lugares que a protagonista Maria visitara, sempre em prol de missões humanitárias, sobretudo a de educadora, função que a levou a Olho D’água, lecionar para o antigo Mobral, hoje EJA. Passado quarenta anos, Maria retorna ao sertão e durante o trajeto num ônibus põe - se a relembrar das agruras que passou ao pisar numa terra castigada pela seca e povoada por pessoas tão humildes e ignorantes, mas que a receberam de coração aberto. Se eram ignorantes, sua missão ali faria todo o sentido. Será? Por mais que a predominância seja uma ligação afetiva, criada a partir da empatia da protagonista para com as carências do povo de Olho D’água, sobretudo a sertaneja Fátima e seus filhos, a narrativa não deixa o debate político de lado uma vez que Maria tenta incutir na população um pensamento crítico, ou seja, induz o povo a pensar na política daquela localidade, em plena época do regime ditatorial.
   Pode-se categorizar como um livro de memórias, pois é notório o forte saudosismo impresso na narrativa, sobretudo quando Maria compara o sertão de hoje, avistado da janela do ônibus de modo preciso, com o sertão de outrora que trouxe à protagonista tantas descobertas. As lembranças de Maria são compostas pelo trabalho árduo das pessoas do povoado; pelo aboio dos vaqueiros; pelas histórias contadas pelo povo, algumas em forma de repente; pelas festividades religiosas, entre tantos aspectos comuns àquela região. Tudo rememorado de maneira que Maria, ao contrário dos outros passageiros, não se sente ansiosa para chegar ao destino,pois um forte saudosismo daquele primeiro sertão, tão característico em sua aridez, toma conta de sua mente e ela percebe que aquele lugar, devido a algum progresso, já não é mais o de outrora. Talvez por conhecer de perto a vida em lugares semelhantes ao retratado em Outros Cantos minha leitura foi rápida, não precisei do dicionário em nenhum momento, o que não se pode negar que o leitor nascido numa metrópole não recorra a ele. Todavia as passagens no presente, em que a narradora tece críticas ao nosso tempo, seja da rapidez imposta a todos nós: “Não é só o fast–food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave!” (p. 72) corresponde ao que mais achei interessante nessa narrativa, pois denota uma lucidez e autenticidade que só uma pessoa autêntica e criativa possibilita na composição de uma literatura cativante e rica em memórias. É possível uma comparação com Vidas Secas, do Graciliano Ramos, sobretudo na linguagem de ambos, direta sem adornos, apenas tecendo o fio das memórias, que como sabemos, é fotográfica.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Como nossos pais

imagem da cena inicial do filme de Laís Bodanzki
  Como nossos pais é um filme dramático que aborda a difícil situação de uma mulher ao tentar conciliar os vários papeis impostos a ela nos nossos dias. Ser mãe, lidar com os percalços do casamento, abrir mãos dos sonhos profissionais para poder viver do que é possível no presente, ou seja, trabalhar num ramo apenas pelo dinheiro, entre tantos outros desafios é uma tarefa hercúlea.  Some-se a esses fatores uma notícia bombástica acerca de sua paternidade proferida por sua mãe num pleno almoço de domingo! Eis a cena inicial desse drama que já incute no telespectador a vontade de conferir o desenrolar dessa narrativa cinematográfica.
  Com atuações convincentes de Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra, mãe e filha nesse longa dirigido por Laís Bodanzky, esse filme abarca uma gama de conflitos de modo bem articulado na narrativa. Não basta Rosa lidar com o fato de sua mãe ter escondido a verdade de sua paternidade por várias décadas, o homem a quem ela o considera seu pai não passa de um fracassado artista a se aproveitar das mulheres por ele conquistadas; a empresa em que Rosa trabalha a demite após uma “cagada” das grandes  onde numa importante reunião ela, atabalhoadamente, apresenta um arquivo contendo uma peça de teatro ao invés do projeto empresarial sobre utensílios de banheiros. Para entornar ainda mais o caldeirão de infortúnios de Rosa, ela desconfia que seu apático marido tem uma amante! Mas não para por ai...
   Este filme tem vários méritos, um deles é a pincelada de humor que vez por outra salta nas frestas desse convincente drama. Nesse núcleo pertencem o pai (artista fracassado) de Rosa e sua meia-irmã, uma adolescente com os hormônios fervilhando em rebeldia – com a cara do século XVI- claro! Além das falas do roteiro serem bem inteligentes. Por exemplo, quando Rosa conta estorinhas para as filhas elas pedem para ouvir a história da Eva, ao menos esse incauto espectador sequer atinou que seria nada menos que a narrativa bíblica e, pra variar, a passagem em que Deus determina um castigo à mulher após ela e Adão terem cometido o pecado. Ao enveredar por esse lado- a mulher sempre oprimida- o longa corre o risco de ser taxado como obra de cunho político feminista, mas isso é apenas um dos modos de categorizar o cinema contemporâneo. O importante é que Como nossos pais não é “dramalhão barato-forçado”, muito menos, mero entretenimento, mas um filme muito bem realizado que não comete firulas visuais, mas foca no roteiro e nas boas atuações do elenco.

  Não bastasse os acertos do filme de Laís Bodanzki já citados, o mesmo ainda traz uma canção da Céu, uma das artistas mais originais da safra de novas cantoras, na trilha sonora. Em suma, é daqueles filmes que prendem a atenção pelo realismo das cenas, sobretudo aquelas que retratam o cotidiano mais banal, por exemplo, nas birras da filha de Rosa, beirando a pré-adolescência. Um teste de paciência que faz qualquer mãe contar até três, respirar fundo pra não perder a linha, mas o instinto materno fala mais alto mesmo, enfim, o máximo que ocorre é Rosa esquecer o leite no fogão. Ops, outro spoiller. Sorry, nada que estrague a experiência de um filme que incute inúmeras reflexões acerca da maternidade, do direito da mulher em ser tão livre quanto o homem e de amor em seu sentido amplo. Nada mal, cinema nacional.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A ousadia de Clarice

1° edição, Artenova,1974
  A Via Crucis do Corpo é um pequeno volume de contos escritos por Clarice Lispector em 1974. Desnecessário falar que essa obra praticamente fica nas sombras dos aclamados trabalhos da autora, como a novela A hora da estrela ou os romances A paixão segundo G. H. e Perto do coração selvagem. Mesmo no ambiente acadêmico, onde as pesquisas sobre a obra de Lispector são abundantes, são raros os que se detém sobre A via crucis do corpo. Por qual motivo esse livro é considerado obra menor? Não haveria neste o mesmo elemento criativo presente nos livros consagrados?
  O fato é que o livro foi muito mal recebido quando da época do seu lançamento, 1974, alguns críticos taxaram a obra de lixo e que seria melhor não ter sido lançada. A professora Vilma Âreas, argumenta que a ousadia do livro, sobretudo por apresentar personagens pouco convencionais, como senhoras sexagenárias (octogenárias também) com desejos sexuais, prostitutas e travestis disputando o mesmo homem, moças recatadas seduzidas por extraterrestres e até uma paródia do texto bíblico da Anunciação, entre outros, foi um dos fatores que gerou o desprezo por essa obra. Inclusive a própria autora, relata um desprezo no texto Explicação: “Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo.” (P.12). Todavia, como Clarice Lispector é uma escritora intuitiva - os romances comprovam isso - é fácil compreender que uma obra sob encomenda como é o caso de A via crucis do corpo, acaba por tolher a sua liberdade criativa. Na melhor das hipóteses testa os seus limites, uma vez que a própria argumenta que “tratava-se de um desafio”.

  Além dos contos polêmicos, que são cheios  de humor, essa coletânea apresenta quatro crônicas que relatam o processo escritural dos conto de A via crucis, ou seja, a autora permite-se a uma proximidade com o seu leitor, até então desconhecida do público que a imaginavam uma pessoa tão misteriosa quanto a esfinge. Essa aura de mistério em torno de Clarice é oriunda de seus profundos textos como A paixão segundo G.H. , romance denso que jamais se esgotaria numa só leitura. Em contrapartida, o volume A via crucis do corpo é escrito numa linguagem simples, apesar que é uma obra repleta de referências que vão de elementos do cinema ao texto bíblico, ou seja, o simbolismo acompanha Clarice até mesmo em seus trabalhos menos rebuscados. Vale ressaltar, que é necessário ler A via crucis do corpo, atendo-se que é um trabalho meramente ficcional, onde a autora concatena suas ideias com a finalidade de tecer uma imitação da vida. Nessa imitação da vida, há espaço pra muita fantasia. Contrariando aquela música popular do nosso tempo, em A via crucis do corpo há espaço para ousadia e tristeza. Mas eu dissera que há muito humor nos textos... bem, leiam esse livro de Clarice.