1° edição, Editora Alfaguara, 2016 |
O romance Outros
cantos, de Maria Valéria Rezende é uma narrativa realizada em primeira pessoa onde a protagonista delineia uma série
de reminiscências na qual predominam sua estadia num povoado do sertão
nordestino chamado Olho D’água. Trata-se de uma leitura muito fluida, pois é
narrado com uma simplicidade e coerência, embora vez por outra o leitor esbarre
em algum vocábulo peculiar, pertencente ao dialeto regional do lugar
rememorado.
O sugestivo título Outros cantos alude aos
diversos lugares que a protagonista Maria visitara, sempre em prol de missões
humanitárias, sobretudo a de educadora, função que a levou a Olho D’água,
lecionar para o antigo Mobral, hoje EJA. Passado quarenta anos, Maria retorna
ao sertão e durante o trajeto num ônibus põe - se a relembrar das agruras que
passou ao pisar numa terra castigada pela seca e povoada por pessoas tão
humildes e ignorantes, mas que a receberam de coração aberto. Se eram
ignorantes, sua missão ali faria todo o sentido. Será? Por mais que a predominância
seja uma ligação afetiva, criada a partir da empatia da protagonista para com
as carências do povo de Olho D’água, sobretudo a sertaneja Fátima e seus
filhos, a narrativa não deixa o debate político de lado uma vez que Maria tenta
incutir na população um pensamento crítico, ou seja, induz o povo a pensar na
política daquela localidade, em plena época do regime ditatorial.
Pode-se categorizar como um livro de
memórias, pois é notório o forte saudosismo impresso na narrativa, sobretudo
quando Maria compara o sertão de hoje, avistado da janela do ônibus de modo
preciso, com o sertão de outrora que trouxe à protagonista tantas descobertas.
As lembranças de Maria são compostas pelo trabalho árduo das pessoas do
povoado; pelo aboio dos vaqueiros; pelas histórias contadas pelo povo, algumas
em forma de repente; pelas festividades religiosas, entre tantos aspectos
comuns àquela região. Tudo rememorado de maneira que Maria, ao contrário dos outros
passageiros, não se sente ansiosa para chegar ao destino,pois um forte saudosismo daquele primeiro sertão, tão característico em sua aridez, toma conta de sua mente e ela percebe que aquele lugar, devido a algum progresso, já não é mais o de outrora. Talvez por conhecer
de perto a vida em lugares semelhantes ao retratado em Outros Cantos minha
leitura foi rápida, não precisei do dicionário em nenhum momento, o que não se
pode negar que o leitor nascido numa metrópole não recorra a ele. Todavia as passagens
no presente, em que a narradora tece críticas ao nosso tempo, seja da rapidez
imposta a todos nós: “Não é só o fast–food no estômago, é o fast-food no
cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece
um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a
me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave!” (p. 72) corresponde ao que mais achei interessante nessa narrativa, pois denota uma
lucidez e autenticidade que só uma pessoa autêntica e criativa possibilita na
composição de uma literatura cativante e rica em memórias. É possível uma
comparação com Vidas Secas, do Graciliano Ramos, sobretudo na linguagem de
ambos, direta sem adornos, apenas tecendo o fio das memórias, que como sabemos,
é fotográfica.
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