domingo, 31 de dezembro de 2017

Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende

1° edição, Editora Alfaguara, 2016
  O romance Outros cantos, de Maria Valéria Rezende é uma narrativa realizada em primeira pessoa onde a protagonista delineia uma série de reminiscências na qual predominam sua estadia num povoado do sertão nordestino chamado Olho D’água. Trata-se de uma leitura muito fluida, pois é narrado com uma simplicidade e coerência, embora vez por outra o leitor esbarre em algum vocábulo peculiar, pertencente ao dialeto regional do lugar rememorado.
   O sugestivo título Outros cantos alude aos diversos lugares que a protagonista Maria visitara, sempre em prol de missões humanitárias, sobretudo a de educadora, função que a levou a Olho D’água, lecionar para o antigo Mobral, hoje EJA. Passado quarenta anos, Maria retorna ao sertão e durante o trajeto num ônibus põe - se a relembrar das agruras que passou ao pisar numa terra castigada pela seca e povoada por pessoas tão humildes e ignorantes, mas que a receberam de coração aberto. Se eram ignorantes, sua missão ali faria todo o sentido. Será? Por mais que a predominância seja uma ligação afetiva, criada a partir da empatia da protagonista para com as carências do povo de Olho D’água, sobretudo a sertaneja Fátima e seus filhos, a narrativa não deixa o debate político de lado uma vez que Maria tenta incutir na população um pensamento crítico, ou seja, induz o povo a pensar na política daquela localidade, em plena época do regime ditatorial.
   Pode-se categorizar como um livro de memórias, pois é notório o forte saudosismo impresso na narrativa, sobretudo quando Maria compara o sertão de hoje, avistado da janela do ônibus de modo preciso, com o sertão de outrora que trouxe à protagonista tantas descobertas. As lembranças de Maria são compostas pelo trabalho árduo das pessoas do povoado; pelo aboio dos vaqueiros; pelas histórias contadas pelo povo, algumas em forma de repente; pelas festividades religiosas, entre tantos aspectos comuns àquela região. Tudo rememorado de maneira que Maria, ao contrário dos outros passageiros, não se sente ansiosa para chegar ao destino,pois um forte saudosismo daquele primeiro sertão, tão característico em sua aridez, toma conta de sua mente e ela percebe que aquele lugar, devido a algum progresso, já não é mais o de outrora. Talvez por conhecer de perto a vida em lugares semelhantes ao retratado em Outros Cantos minha leitura foi rápida, não precisei do dicionário em nenhum momento, o que não se pode negar que o leitor nascido numa metrópole não recorra a ele. Todavia as passagens no presente, em que a narradora tece críticas ao nosso tempo, seja da rapidez imposta a todos nós: “Não é só o fast–food no estômago, é o fast-food no cérebro: fast-news, fast-thinking, fast-talking, fast-answering, fast-reading. Parece um complô para me obrigar a ser cada vez mais fast, em tudo, a ser avaliada e a me avaliar pela minha rapidez de resposta e de atualização. Ave!” (p. 72) corresponde ao que mais achei interessante nessa narrativa, pois denota uma lucidez e autenticidade que só uma pessoa autêntica e criativa possibilita na composição de uma literatura cativante e rica em memórias. É possível uma comparação com Vidas Secas, do Graciliano Ramos, sobretudo na linguagem de ambos, direta sem adornos, apenas tecendo o fio das memórias, que como sabemos, é fotográfica.

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