Edição de 1996 |
Muitos conhecem Cecília Meireles através dos célebres poemas, mesmo os
que não se aprofundaram na obra da autora, certamente recordam-se de “Motivo”
ou “Retrato”, entretanto, a poeta foi uma cronista de mão cheia! A coletânea “Escolha
o seu sonho” é a prova do seu talento de poeta-cronista, ou seria o inverso? Os
elementos que servem de tema a sua poesia aqui reverberam de forma mais
simples, como é de se esperar de um gênero que prima pela leveza e pela
descrição de fatos do cotidiano absorvidos pelo olhar perspicaz do cronista.
As crônicas de Escolha o seu sonho abarcam desde lembranças da infância
ao descontentamento frente à nova arquitetura da cidade do Rio de Janeiro (Casas
amáveis). Na verdade, o descontentamento da cronista-poeta refere-se ao rumo
que a sociedade ia tomando, como relata em tom de perplexidade um perfil das
gentes que beira ao individualismo, acarretando uma falta de fé na sociedade,
como atesta a frase inicial da crônica “Tempo incerto”: “Os homens tem
complicado tanto o mecanismo da vida que já ninguém tem certeza de nada”. Já no texto “Casas amáveis”, percebemos a falta
de autenticidade provocada pela construção dos novos prédios: “Afinal, tudo são
arranha-céus." (Ninguém mais quer ser como é: todos querem ser como os outros
são.) A indignação chega a tal ponto que Cecília desenha, põe entre parênteses! Nessa crônica, além de descrever as aconchegantes casas de antigamente,
Cecília também expõe a visível falta de nacionalismo que o novo perfil
arquitetônico adquire: “cujas risonhas proprietárias tem sempre um Y no nome,
Yara, Nancy, Jeny...” O modo como a cronista enumera as qualidades das “Casas
amáveis” que tinham “... esse ar humano, esse modo comunicativo, essa expressão
de gentileza...” evocam a sua inerente poeticidade, ou seja, assim como os
poemas de Cecília são carregados de efeitos sinestésicos nessa crônica há
reverberações desse aspecto tão peculiar da escritora.
Além da angústia perante o caótico futuro que a selvageria de uma
cidade a crescer desenfreadamente provocaria (Tempo incerto), a poeta-cronista
também dar espaço para que outros artistas sirvam de tema de suas crônicas,
como em “Portinari, o trabalhador”, onde enumera o intenso labor pelo qual
viveu e ironicamente morreu Cândido Portinari. Em O “Divino Bachô”, ela nos
apresenta a um poeta japonês, Bachô, sobretudo nos introduz ao hai-kai e ainda
nos ilumina para o entendimento dessa composição poética, pois, “É um engano tomá-lo
apenas pelo aspecto superficial: precisa-se penetrar na intimidade da sua
significação”. Essa receita é a mesma que precisamos dispor para entender sua
branda e envolvente poesia. Entretanto, se os poemas de Cecília não tocarem o
leitor numa primeira conferida, o mesmo não poderá se dizer de suas crônicas
que conquistam-nos logo nas primeiras linhas. Vale ressaltar que as crônicas deste volume passeiam por vários estados d'alma da poeta-cronista, pois acabei citando excepcionalmente os textos que demonstram indignação por algo. O leitor será presenteado com uma obra que o levará dos risos às lágrimas, isso é fato. Há vários textos em que Cecília permite-se rir de algo inusitado ou patético mesmo, a crônica "Mundo engraçado" onde a cronista discorre sobre tipos como "o mentiroso" e o "posudo", ou seja, aquele que ostenta algo em tom de solenidade; algo como os "posers" ou "fakes" dos nossos dias. E, claro, há os textos que revelam a canônica escritora que conhecemos: sublime; branda; profunda.