domingo, 25 de dezembro de 2016

Comentando o filme Aquarius, de kleber Mendonça Filho

Sônia Braga em cena do aclamado Aquarius
    Tive receio em assistir Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, devido o posicionamento (assertivo) do filme perante  o caótico contexto político brasileiro. A questão que me perturbava era: Será que o filme, apesar de falar sobre resistência, não é significativo o suficiente para falar por si? Não é artístico o suficiente para não precisar denunciar o golpe? Foi um descarado golpe sim! Mas e os prêmios ganhos pelo diretor e pela atriz principal? Estas e outras questões me instigavam a conferir a obra para formar uma opinião livre de tanto julgamento alheio.
    Não estava de todo errado, Aquarius fala de resistência mas, o que salta na tela é a criatividade do diretor em mostrar uma grande personagem feminina, Clara, interpretada de forma magnífica por Sônia Braga. Basicamente o roteiro é sobre uma senhora que resiste bravamente às investidas de uma construtora em comprar o seu apartamento,único que falta  ser vendido no Edifício Aquarius. Ao passo que vamos conhecendo Clara, entendemos porque ela não quer se desfazer do apartamento. Clara sobreviveu a um câncer no passado e hoje é aposentada, mãe de três filhos, viúva e avó. Ela segue sua rotina quase como um ritual, morando com sua empregada de décadas, Ladjane. Outra grande característica da personagem é que ela é uma senhora muito culta, inclusive, sendo convidada a dar entrevistas onde fala sobre seu apurado gosto musical.
    Aquarius é construído assim como a obra anterior de Kleber, O som ao redor, entretanto, os recursos inerente a ambos aqui falam mais alto: As fotografias em preto e branco do início já denunciam tratar-se de um filme de memória; a caracterização do começo dos anos oitenta é excepcional; a divisão em capítulos também é outro detalhe importante dos filmes do diretor pernambucano. Esses aspectos, artísticos, permitem ao filme falar por si só, ou seja, é um filme de arte, devido as características como fotografia, atuação, roteiro, etc, trazerem potencial digno de reconhecimento em festivais mundo a fora. Todavia, seria ingenuidade minha não reconhecer o viés político de Aquarius, uma obra fruto do nosso conturbado tempo. O filme é uma convincente crítica ao capitalismo selvagem que ignora o fator humano. O indivíduo e sua história afetiva, doravante Clara não se desfaz de seus discos de vinís apesar da praticidade que é ouvir música em celulares, hábito que ela também possui.
    A personagem de Sônia Braga é apaixonante por ser uma mulher extremamente humana, família, inclusive convivendo com sua empregada como se fosse membro dela, como vemos na cena em que Clara canta e toca ao piano no aniversário de Ladjane. Ressalto que não conhecia a música cantada em aniversários de Aquarius, deve ser algo característico de Pernambuco, local onde se passa o filme. Já o personagem antagonista, vivido por Humberto Carrão, pouco aparece, embora em suas poucas cenas já destila um cinismo insuportável que nos faz esquecer que ele é o mocinho da atual novela das 21. 
   
Não posso deixar de falar que Aquarius é um tapa na cara da sociedade sim, para aquelas pessoas que se acham acima da lei, que discriminam as minorias, que não acreditam nos ideais esquerdistas, por exemplo: na cena do exercício na praia onde aparecem uns três garotos morenos, as pessoas tendem a pensar que se trata de arruaceiros, de assaltantes, entretanto o grupo se junta aos que estão se exercitando. O mau sujeito é um branquinho playboy, sujeito traficante como denuncia o salva vidas, vivido por Irandhir Santos, para Clara. Nas cenas finais do filme o racismo se faz presente na fala do antagonista. E é assim mesmo em filmes de Kleber Mendonça Filho, as situações vão se encaminhando pra uma sufocante tenção que culmina nos segundos finais.
 

domingo, 27 de novembro de 2016

As Histórias de fadas de Oscar Wilde

Edição de bolso da Saraiva
   Oscar Wilde sempre nos remete ao tema beleza e tentações, e claro, a sua obra prima “O retrato de Dorian Gray”. Certamente, foi uma personalidade muito controversa segundo consta sua biografia. Entretanto, mesmo analisando seus textos diversos, as controvérsias acentuam-se cada vez mais. Apesar que soa ingênuo da minha parte querer separar o autor da novela “O retrato de Dorian Gray” do autor de contos infantis, escritos para os próprios filhos. Pois mesmo em contos como “O príncipe feliz” ou “O jovem rei”, entre outros, o apelo descritivo construído com metáforas designadas por pedras preciosas estão lá, em demasia. A mesma tentação ocasionada pela beleza, ou melhor, valendo-se de um signo atual, a “ostentação” era a armadilha visual que Wilde tanto tematizava em seus textos.
   Em seu “Histórias de fadas” não temos o esperado “happy end”, o que leva-me a acreditar que Wilde intencionava incutir em seus filhos ( e possíveis leitores) os valores reais que salvariam a alma, ou seja, resistir as tentações, que podem nos cegar de tão belas, é o que deve-se fazer para  não padecermos tão tragicamente como seus personagens. No conto “O jovem rei” vemos que o belo e valioso  que ornamenta os reis é obtido através do sofrido trabalho dos pobres, ou melhor, de um trabalho degradante e arriscado o qual o jovem rei toma conhecimento em seus sonhos. O texto comove pela narrativa dramática, entretanto com o propósito disciplinador que exalta a renúncia ao ornamento que enfeita o reinado mas traz um rastro de morte consigo.
   Além das tentações pelas pedras preciosas e todo o requinte dos abastados do século XIX, outra armadilha á qual Wilde alude em seu “Histórias de fadas” é o próprio ego inflado de alguns. O texto “O foguete notável” funciona como um apólogo e narra a estória de um foguete que se considera superior a todos os outros. Um tom de leveza e humor perpassa o texto devido aos disparates proferidos pelo foguete que crer que todos os acontecimentos giram em torno dele. Um “notável” exemplo: os foguetes serão lançados na ocasião do casamento do príncipe – o foguete notável enxerga o oposto, é sorte do príncipe casar-se no dia em que ele será lançado. O cúmulo é o fato deste foguete distorcer os comentários a seu favor, vejamos um excerto:
- Ora essa! – exclamou. – Olha só um foguete que não presta! – e atirou-o por cima do muro, em uma vala.
-Foguete que não presta? Que não presta? –disse ele, enquanto voava pelos ares.  – Impossível! Foguete de dar festa, foi isso que o homem disse. Não presta e dar festa tem quase o mesmo som, e para falar a verdade são praticamente a mesma coisa- e caiu na lama. (p. 47, 48).
   Os contos de “Histórias de fadas” são muito comoventes. Os textos, apesar de destinados ao público infanto-juvenil, explanam os vastos caminhos que rondam a alma do homem, os medos, os objetivos e também a inevitável morte. Que não esperemos princesas que ressuscitam após um beijo do amado ou que perdem sapatinhos... a matéria-prima de Wilde é a sociedade moderna e seu homem preso ao presente e refém da sua alma.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Os "Laços de família", de Clarice Lispector

Recente edição da Rocco
   A coletânea de contos “Laços de família” é o livro ideal para quem pretende conhecer a obra de Clarice Lispector. Devido a popularidade da autora ter aumentado graças às redes sociais e as várias frases atribuídas a este mito, nada mais justo que adentrar o vasto território dos textos consagrados, e o gênero conto, por sua concisão, é o assertivo ponto de partida para esta tarefa.  
   Os textos de laços de família são considerados verdadeiras obras-primas do conto brasileiro, alguns deles figuram na antologia “Os cem melhores contos brasileiros”. A temática, o apuro formal e a singularidade da prosa clariceana fascinam vários leitores desde que essa obra foi publicada em 1960. Um dos trunfos de Clarice é extrair da banalidade, do rotineiro, situações que desencadeiam um forte abalo na vida de seus personagens. Esse “abalo” configura no que designou-se "epifania", ou seja, uma revelação, momento em que a personagem tem um insight. Em laços de família o texto que melhor exemplifica a epifania é o conto “Amor” em que a dona de casa Ana tem sua rotina alterada após avistar um cego mascando chiclete. O zelo da protagonista para que tudo em sua casa, com o marido e os filhos corresse na mais perfeita ordem fizeram dela um ser mecânico, tal qual o movimento de mascar chiclete do cego. Todo o texto é repleto de simbologias, razão pela qual sua análise é sempre requisitada nos vestibulares. Outro conto de destaque é “Uma galinha” onde acompanhamos a sina de uma galinha que durante um certo período escapou de ir pra panela. Percebe-se uma tentativa de humanização da galinha, mesmo ela destinada a ser o que fatalmente era: uma galinha que iria servir de alimento mais cedo ou mais tarde. Entretanto, a “galinha de domingo”, ao por um ovo tem sua ida pra panela adiada. Sob os gritos da menina que presenciou o fato: “-Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!” (p. 32) Após isso ela “tornara-se a rainha da casa”, até cumprir o seu fatal destino.
    Certamente um dos melhores textos desta coletânea é “Feliz aniversário”, cuja narrativa aborda a comemoração dos oitenta e nove anos de uma matriarca, D. Anita, que passa a festa inteira na cabeceira da mesa fitando com horror a mediocridade encenada por sua própria família. É nesse texto que observamos que os laços de sangue não são suficientes para fazer brotar bons sentimentos. As famílias se desentendem, o egoísmo humano forma barreiras intransponíveis, daí vemos em “Feliz aniversário” noras que se detestam, irmãos forjando discursos ou mesmo não comparecendo à ocasião. A mesquinhez humana é evidente neste conto, por exemplo, uma das noras ostenta  arrogância, “esta vinha com seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles...” (p. 54) Como se nada daquilo fizesse sentido para a aniversariante que medita amargamente sobre seus próprios frutos, com exceção de um neto, Rodrigo, “carne do seu coração”. Um detalhe importante deste texto é a personagem Cordélia, assim como a filha do rei Lear, esta enxerga a verdade e prefere a mudez a cair na armadilha das palavras encenadas, ciente do amor, do seu segredo.

    Laços de família é seguramente um dos cartões de visita de Clarice Lispector, alguns críticos literários chegam a concordar que a Clarice do conto supera a romancista. Polêmicas à parte, Laços de família é leitura imprescindível para que vejamos o fiel retrato da natureza humana, além da criatividade de Clarice em situar suas personagens, seja presa aos laços afetivos ou familiarizadas com outra forma, que não a humana, sempre em busca de uma linguagem que revele a verdade do ser. Doravante a proximidade com os bichos, uma galinha, um cão ou a vida “silenciosa, lenta, insistente” do jardim Botânico.

domingo, 16 de outubro de 2016

Comentando o filme "Jovens adultos"

Charlize Theron em primorosa atuação
“Jovens adultos” é um filme sobre falta de maturidade. A protagonista desse drama com nuances cômicas é Mavis Gary, interpretada com maestria pela oscarizada Charlize Theron (Monster- Desejo assassino). Mavis é uma ghost writer de uma série “Young adult” que fora cancelada, entretanto ela precisa escrever o último capítulo. Sob pressão de seu editor e vivendo uma fase nada criativa, a página ainda em branco, Mavis, ao vasculhar sua mailbox, encontra um convite de felicitações pela chegada de um bebê, é a filha de Buddy Slade (Patrick Wilson), seu namorado dos tempos da escola. Apesar dos seus 37 anos, Mavis é tão imatura quanto as personagens da série da qual é autora. Toma para si o convite do email, ignorando totalmente a fase atual, o casamento bem resolvido do antigo namorado. Mavis é uma pessoa totalmente “sem noção”! É uma personagem que não sabemos se sentimos pena, ou raiva ou mesmo alguma estima pelas absurdas atitudes tipicamente “adolescentes”.
Roteirizado por Diablo Code (Juno), “Jovens adultos” possui diálogos sensacionais, a “falta de noção” de Mavis não parece um simples desvio de caráter da personagem, uma vez que ela possui um lado humano, tem um cachorro de estimação e quando reencontra um antigo colega de escola que fora vítima de um crime de ódio, toma empatia pelo moço e lança a questão, para o público: é mais doloroso o trauma físico, ou as neuroses que um especialista poderia resolver? Explico, a vítima do crime de ódio ficou com graves sequelas, como mobilidade reduzida e quase impotente.  O cúmulo da desorientação de Mavis é achar que a fase em que era a mais popular da escola era a sua melhor fase. Era nesse período em que descobrimos que ela era muito egoísta, deslumbrada pelo sucesso com os garotos e principalmente por Buddy, este no presente envolto em mamadeiras e feliz com sua mulher Bety, cujo motivo não é empecilho para Mavis fazer de tudo para reconquistar o antigo namorado. Inclusive ao ponto de se insinuar perante Bety e suas amigas. Para Mavis só o que ela pensa importa já que "o amor supera tudo" também "a sociedade aceita tudo", isso e outras projeções oriundas do universo unilateral e retrógrado de Mavis. 

A eficiente atuação de Charlize e o ótimo roteiro de Cody entregam um bom filme, destes que valem rever várias vezes. Há cenas impagáveis em que Mavis Gary munida de uma petulância que só os adolescentes ostentam, provoca o riso devido o absurdo que determinada atitude acarreta. Outra característica importante em Mavis é a preocupação com a aparência: salões de beleza e roupas sofisticadas fazem parte de sua maneira de se apresentar aos outros, já em sua casa entrega-se ao desleixo de modo geral, alimenta-se de enlatados, veste as velhas camisetas com estampas infantis e abusa de Coke. Interessante também o modo como Maves colhe “por acaso” diálogos de pessoas na rua e os insere na série da qual é ghost writer, encaixando-os devidamente no mundo pretensioso da fase juvenil. 

sábado, 8 de outubro de 2016

Criolo:rimas de superação e esperança

Criolo e as rimas de esperança de "Ainda há tempo"
  Um dos álbuns nacionais lançados neste ano que muito escuto é “Ainda há tempo”, do Criolo. Na verdade, trata-se de um relançamento, o álbum fora lançado há dez anos atrás, época em que o rapper designava-se Criolo Doido. O relançamento desse trabalho deve-se ao fato de Criolo ter se tornado grande nome da música brasileira após a ótima recepção de “Nó na orelha” em 2011 e pelo o sucessor “Convoque seu Buda” em 2014, ou seja, o álbum de 2006 era conhecido apenas pelos fãs mais antigos, aqueles do tempo em que Criolo não tinha expandido suas fronteiras musicais, mantinha-se fiel ao rap tradicional e se apresentava nas rinhas de MC's, eventos geralmente restritos a adeptos do gênero.

   Apesar de “Ainda há tempo”, versão 2016, conter apenas oito faixas, muito menos que o álbum de 2006, ele traz o essencial do Criolo em seu início, na periferia da Zona Sul Paulistana. Seria injusto que o público que acompanha o músico desde o sucesso de “Não existe amor em SP”, não tomasse conhecimento das pérolas musicais do Criolo das antigas. Certamente, alguns desses fãs das antigas preferem as versões do álbum original às novas versões super produzidas por feras da cena. Na verdade, não precisa ser fã de rap para gostar de Criolo, suas rimas são carregadas de humanidade, ou seja, verdadeiras filosofias de vida extraídas de uma realidade hostil, marcada pelo abandono que são as periferias de uma grande cidade. Muitas frases de Criolo ecoam em nossa mente e no álbum “Ainda há tempo” não falta material para isso: a própria faixa título já expressa a ideia de esperança, de uma crença de que a humanidade tem jeito, por mais que a realidade nos mostre tantas atrocidades e desrespeito à vida.  Se tem um artista que merece o título de “grande pensador contemporâneo”, esse alguém é Criolo. No referido álbum, as rimas criativas versam sobre ele ter encontrado sua salvação no rap, uma vez que muitos jovens acabam sucumbindo para o mundo do crime já que faltam oportunidades na periferia. Exemplo maior do poder de humanização da arte! Criolo no palco expurga suas convicções, expõe suas memórias e abre o coração, não raro o amor materno consta em suas rimas: “Eu respeito, ah como eu respeito/ amor de mãe não se escreve, aí não tem defeito/ seria tão bom se a mãe da gente não sofresse/ não ficasse doente e também não envelhecesse.” São versos da canção “É o teste”, faixa que abre o álbum e uma das melhores letras do rapper. Os recados são inúmeros: “Procure ser feliz, pobreza não é derrota”; “O que penso família, ainda nela acredito” e claro, o refrão: “É o teste, é o teste, é a febre, é a glória/ não se corromper pra nóis já é vitória.” Não posso esquecer de destacar a faixa “Vasilhame”, especificamente a mudança de um verso que Criolo, numa atitude humilde, reconhece que certas palavras ofendem e por isso alterou um verso considerado homofóbico: “os traveco tão ali, alguém via se iludir.” Na versão repaginada ficou: “O universo tá ai, alguém vai se iludir.” A faixa em questão versa sobre o abuso do álcool e o quanto isso pode ser prejudicial a saúde e favorável apenas aos donos das empresas de bebidas. Retomando o tema da homofobia, Criolo disse, certa vez, não me atenho ao contexto, uma das coisas mais certeiras dessa vida: “até parece que ser gay é defeito”. Seria bom se muitos artistas fossem tão bons no que fizessem e também fossem tão humanistas como Criolo, mas “ainda há tempo”!

domingo, 25 de setembro de 2016

Comentando, Trilogia do Desejo de Roberto Muniz Dias

Trilogia: a versatilidade romanesca
Trilogia do Desejo é a coletânea que agrupa os três primeiros romances do escritor piauiense Roberto Muniz Dias, são eles: Adeus a Aleto, Um buquê improvisado e Urânios. Geralmente, essas obras estão relacionadas a literatura Queer, ou literatura LGBT, uma vez que a temática homoafetiva é recorrente na ficção criada por Roberto Muniz Dias. Entretanto, a leitura atenta de Trilogia do desejo revela inúmeras possibilidades de categorização dessa literatura, ou seja, as estórias não se restringem as aventuras, descobertas das personagens, homossexuais ou não, fatos extraordinários  ou coisas desse gênero, mas importa, sobretudo, nas narrativas de Roberto Muniz, a concatenação das memórias com os recentes “estados d’alma”   dos seus protagonistas. Doravante, uma série de referências são inseridas na narrativa corroborando para o hibridismo do texto, ou seja, mitologia grega, trechos de canções populares, cânones literários, entre outros aspectos, surgem num fluxo de consciência que acentua a incessante busca da “verdade” de seus personagens.
Adeus a Aleto
No romance de estreia de Roberto Muniz Dias, acompanhamos um protagonista, escritor, em sua estadia pela Europa divulgando sua obra, e claro, entregando-se aos encantos e prazeres das noites de Amsterdã, entre vinhos e a companhia de um misterioso jovem chamado Nikov. Quem seria Nikov? Um turbilhão de dúvidas se faz na mente do protagonista. As luzes, os sons, toda uma atmosfera de suspense perpassa nas páginas de Adeus a Aleto. Um escritor dividido entre os prazeres noturnos e a fertilidade da criação literária, eis o dilema do protagonista sem nome de Adeus a Aleto.
Um buquê improvisado:
Talvez seja o romance mais palatável de Roberto Muniz Dias, por conter os ingredientes de uma boa ficção literária, ou seja, dramas, aparente linearidade, personagens cativantes, antagonistas de causar revolta, sobretudo, a problematização do conceito religioso, ou seja, a maneira como o cristianismo serviu de forte influência na construção da personalidade e fomentação da cultura a qual pertencemos: maniqueísta, preconceituosa e preocupada com o ideal heteronormativo. A pungência de Um buquê improvisado é ampla por minar o grupo social que é a família, ou seja, a noção de família é problematizada através das personagens que se veem inseridas enquanto “estrutura tradicional” da sociedade, quando justamente essa noção está sendo posta em cheque pelo protagonista J. em meio sua presente situação e a descoberta de fatos importantes sobre seu pai.
Urânios
Nesse romance, de forte tom intimista, o leitor é apresentado a um “relato de amor e morte, mas nada póstumo porque tudo já estava morto: o amor, o tempo e a identidade.” Este relato trata-se de uma experiência poliafetiva, ou seja, um jovem junta-se a um casal de namorados, numa entrega movida por impulsos sexuais, narrados de forma sublimes, contidas, sem jamais extrapolar para vocabulários pejorativos, uma vez que seu estilo narrativo prima pela sutileza, puro lirismo. Doravante, é problematizada essa modalidade amorosa, através do protagonista de posse da pintura de um galo colorido, herança que insiste em avivar as lembranças do trio amoroso. Disposto em capítulos que se alternam, esse romance aborda, a priori, a construção da identidade do protagonista- o presente e o passado, a gênese, e também corresponde ao retrato fiel da contemporaneidade, no qual os relacionamentos amorosos não mais se restringem às normas do século passado. É o carácter libertário que a boa literatura proporciona. É a Trilogia do desejo dando o grito de liberdade que é desejo de todo indivíduo que se permita pensar e viver com autonomia.


sábado, 27 de agosto de 2016

Comentando "Seminário dos ratos", de Lygia Fagundes telles

Edição da Companhia das letras
   Seminário dos Ratos é um livro de Lygia Fagundes Telles lançado em 1977. Dentre algumas curiosidades acerca do lançamento dessa coletânea de contos, a autora foi entrevistada por ninguém menos que Clarice Lispector, esta, logo deu o veredicto: “já comecei a ler e me parece de ótima qualidade”. São contos extraordinários,  não raro Seminário dos Ratos consta em várias listas de “os essenciais da literatura brasileira”.
    Em Seminário dos ratos, Lygia utiliza-se de temas universais para problematizar diversas emoções e escava com afinco os mais profundos sentimentos. Não por acaso a loucura aparece em dois contos, embora por abordagens distintas o que corrobora para a pluralidade de ideias. Em “A consulta”, Lygia lança mão de certa dose de humor para narrar um episódio ocorrido num hospício. Basicamente, nesse conto, o Doutor da instituição ao verificar certa melhora num dos pacientes, pede que este o substitua, pois precisará ficar ausente por algumas horas. Justamente num dia em que a secretária faltou. Como diz o ditado “missão dada é missão cumprida”, Maximiliano,o paciente, aceita. Entretanto, uma consulta que estava marcada num horário que certamente o Doutor já haveria retornado, acaba sendo adiantada, por desespero do paciente. E o que Maximiliano faz? Adianto, sem entregar muito do conto, que após a conversa com o paciente desesperado, que a noção de loucura pode cair por terra, uma vez que, após o retorno do verdadeiro Doutor, ocorre o seguinte diálogo:
- Ótimo, Max. Você vai indo muito bem, o progresso que fez. Estou muito satisfeito.
-Eu também.
-Falta apenas o último passo, você sabe, assumir sem possibilidades de retrocesso. Então estará curado.
Maximiliano sorriu. A voz saiu mansa, num quase sussurro, “curado e fodido”. (p. 149-150)
   Já o no conto WM a loucura é apresentada de forma bem mais perturbadora. A narrativa é feita em primeira pessoa (ai desconfiança!) e abarca o núcleo familiar composto por uma mãe e um casal de irmãos, o moço é o narrador. À medida que vai desenrolando os aspectos da família e sua loucura reinante – o primeiro espaço apresentado é um consultório psiquiátrico- ao passo em que discorre sobre uma obsessão em marcar as iniciais WM em todos os lugares e sobre a dificuldade que teve em aprender escrever o W. A mãe é uma artista perfeccionista e neurótica, impacientava-se com o assédio, mas reclamava quando era ignorada. E ao que parece a loucura é tão presente em nossa vida, o quanto é fácil aprender uma letra que é apenas uma outra  ao contrário (WM). É um conto de difícil compreensão, não se pode apegar-se a uma aparente simplicidade, pois segundo o personagem- narrador: “O silêncio ajuda a abrir o intricado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo, para ajudá-la, preciso eu também descer aos infernos.” (p. 87) Portanto, muita atenção à entrelinha e a qualquer detalhe desse texto.
   Os textos mencionados acima são apenas dois de que mais gostei de Seminário dos ratos. Certamente, um conto muito conhecido é “Pomba enamorada ou uma história de amor”, onde uma jovem sofre um amor não correspondido e apela pra tudo quanto é crendice ou truque comum pra chamar a atenção do amado, um sujeito bruto e estúpido. Nessa narrativa o humor é uma constante, o que explica o destaque dado a este texto. Também as agruras da velhice, uma paixão de uma menina por um primo, a visita noturna de formigas num quarto de pensão, dentre tantos enredos excelentes, dão a tônica desse singular livro de Lygia Fagundes Telles que é encerrado pelo conto que intitula a obra.


sábado, 20 de agosto de 2016

Velho Chico

Irandhir Santos é Bento dos Anjos em Velho Chico
     No ônibus, no horário de café da empresa e até mesmo nas redes sociais e seus assuntos-mais-que-previsíveis, quase não se fala em “Velho Chico”, atual novela do horário nobre. Por que a trama não decolou? Algum engraçadinho diria “com uma lentidão daquelas, ela mal sai do chão”. Será que essa rejeição já estava anunciada quando o Sr. Benedito Rui Barbosa disse estar de saco cheio de novelas com personagens gays? Será a culpa da vilã (?) que só grita e só faz bonito com a sanfona? Bem, estou tentando entender o porquê deste “fracasso”.
    Não peguei a primeira fase de Velho Chico, mas fiquei entusiasmado, apesar das críticas negativas, com a segunda e definitiva fase, doravante a história prosseguiria até o último capítulo. Mas, ao que parece, a trama de ódio entre duas famílias, clichê Barbosiano, mal ultrapassa a audiência das novelas anteriores, respectivamente “A regra do Jogo” e “Babilônia”. O público, simplesmente, não se agradou por Velho Chico e a razão mais apontada é quanto ao ritmo da trama, que é lento. Exceto algumas cenas demasiado longas, sobretudo de extensos diálogos entre os personagens, a trama apresenta diversas situações que movimentam a história sim. E não são poucas, pois quando o foco não está na rixa entre os protagonistas, a tensão é cortada por típicos personagens como “o fofoqueiro”, papel interpretado com eficiência por Gésio Amadeu, com seu Chico Criatura, o dono do bar de Grotas, de onde todos os acontecimentos da cidade passam por lá. Seguindo nessa verve de “disse-me-disse, a personagem “Dalva”, interpretada por Mariene de Castro, sempre de olho em tudo que acontece na casa do coronel , tem seu destaque.  
   Outra razão corresponde à trilha sonora que é constituída por músicas de décadas mais que ultrapassadas, daí ecoam Caetano, Tom Zé, Alceu Valença, dentre outros. Em contrapartida, as novas caras musicais que compõem a trilha não são fenômenos de popularidade, mas nomes como Céu, Pélico, Bárbara Eugênia, etc. Quero dizer, não trazem o apelo popular caso nessa trilha, tivesse um nome do sertanejo universitário que nada mais é que um- arremedo-do-forró, ou mesmo uma “estrela” fabricada do funk. São aspectos que indicam uma obra “fora do tempo”, tendo-se em mente uma generalização de como é massa, ou de como uma grande maioria enxerga o mundo. Em suma, uma população urbana, evangélica, que se acha moderna por fazer uso de tecnologia, que se diz musicalmente eclética mas acha que só faz sucesso sertanejo e funk, ou seja, tudo que não vemos em Velho Chico. Quanto ao aspecto religioso, demasiado explorado na trama, creio ser um fator negativo ao sucesso sim, como disse, certa vez Madonna: “ religião não é amor, elas dividem, separam”... não sei se exatamente nessas palavras, mas o sentido é esse. Ao mostrar todo o misticismo das personagens, daquela região, a trama expõe uma fragmentação de pensamento religioso, uma vez que o sincretismo religioso não representa o Nordeste, mas apenas uma parte dele. Embora, seja este um dos aspectos fundamentais para uma coerência da trama, ou seja, é um marco de originalidade que no texto aparece como um resgate de traços culturais praticamente esquecidos, ou ignorados. Nos tempos extremos em que vivemos, as pessoas demonstram uma grande intolerância a diversidade, nesse sentido falo da diversidade religiosa. A urgência, a corrupção, o consumismo exacerbado leva o homem ao esgotamento de si, dai ele só ver “razão” num impossível: “Deus”, que é fabricado e limitador e opressor, porque limita o humanismo. Dai a aversão para as crendices mostradas em Velho Chico.
    Ao que parece, utilizei-me da trama para apontar um descontentamento próprio com a sociedade, erros de coerência textual? Que seja. Sinto realmente pela falta de reconhecimento por Velho Chico. Simplesmente, aprecio o resultado que vejo, seja nas belas imagens do Rio São Francisco ou dos casarios das famílias centrais da trama: a casa grande do coronel e a casa da família humilde, ambas parecem um belo quadro que não precisa de moldura de tão belo. Quanto às atuações, há performances estarrecedoras como a desenvolvida por Irandhir Santos e seu Bento dos Anjos. Seja na candura ou quando a Besta -fera toma conta dele, a entrega é total tanto nas veias que saltam ou pela entonação assertiva do intenso personagem.  O próprio coronel de alma dividida (partida?) consegue transmitir uma relação dúbia, ame ou odeie, condizente com seu personagem opressor. Também a matriarca do clã De Sá Ribeiro, de longe é uma das personagens que sustentam a trama e fazem desta uma obra digna e que reflete certa desorientação do público sedento por novelas frívolas e com vilãs impagáveis. Não posso esquecer de apontar o belo texto que abarca valores como ética, bom senso e todo o humanismo pelo qual lutam os mocinhos da trama, já que o tendencioso jornalismo da emissora... bem, aí já outra história. Não?


sábado, 30 de julho de 2016

Comentando "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres"

  Edição da coleção da Folha de São Paulo
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é o sexto romance de Clarice Lispector e foi lançado em 1969. Essa prosa, embora não abarque a profundidade de uma G.H ou mesmo da Joana da segunda parte de Perto do coração selvagem, é constituída sob uma atmosfera pungente, mas poética também. Sua protagonista, Lóri, é uma mulher solitária que sofre com a dor de existir, ou seja, como outras “mulheres de Clarice”, Lóri, sente-se em descompasso com o mundo, com as outras pessoas, fato que pode mudar quando ela conhece Ulisses. É o início de sua aprendizagem.
A protagonista desse romance é uma das personagens mais fascinantes de Clarice, Lóri, que apesar de sofrer com sua solidão, possui algo muito forte dentro de sí que é o modo de enxergar a vida, pois é uma mulher que procura fazer parte da “coisa” vista. Desse modo, uma noite de luar proporciona-lhe um forte encantamento, até pelo motivo dela considerar-se uma pessoa lunar. Essa solidão voluntária, não faz de Lóri uma pessoa egoísta, pois sendo professora primária, ela sai um pouco da sua “dor de existir” e interage com a sociedade.  A dor de Lóri só poderá ser diminuída quando ela integrar-se à vida pelo amor de um homem: Ulisses, este, também é professor, mas de filosofia numa universidade e apesar de gostar de Lóri, percebe que ela ainda não está pronta para iniciarem um relacionamento. É quando começa o processo de aprendizagem para que Lóri esteja pronta para o amor, pois até então a própria não se considerava apta, mediante sua inadaptação aos modos de existir banalizados. Não que seja “pessoa do outro mundo” mas Lóri não se prende à uma vida comum, o que notamos, por exemplo, quando ela tenta travar contato com uma mulher na rua à espera de condução, o que faz comentando sobre a demora do ônibus e elogiando o vestido da moça, mas  quando sua interlocutora permitiu-se dar-lhe atenção,  Lóri distrai-se com as explicações:
     “Lóri não ouviu mais nada: sorria beatificada: entrara em contato com uma estranha. Interrompeu-a um pouco bruscamente mas om uma doçura de gratidão na voz:
 -Adeus. Obrigada, muito obrigada.
A moça respondeu surpreendida:
-Não quer saber do endereço da loja onde compro?
- Não precisa, obrigada. (p. 117)
As “faltas”, a inadequação de Lóri ante as coisas mais triviais são reforçadas por Ulisses, este não economiza sinceridade e aponta os defeitos da moça, embora que não seja por arrogância ou maldade, pois Ulisses nutre um amor por Lóri e permite-se esperar para que ela fique pronta para vivenciarem o amor mútuo que sentem. Nesse período, da aprendizagem, Lóri arca com a difícil tarefa de enfrentar seus temores, coisas simples, mas como trata-se de “persona” super sensível, um mero acontecimento como ir à praia, não é somente ir até lá: Lóri vai ao mar logo que o dia amanhece e entrega-se a ele numa intensidade de momento epifânico, como se se fundisse àqueles elementos naturais; como um microcosmo e o macrocosmo, expressões que também aparecem nessa narrativa tal é a imersão da personagem nos mistérios da vida.


Cabe lembrar aqui, que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é um romance constituído pela junção de algumas crônicas da autora, como dissera o professor Joel Rosa, especialista em Clarice, uma verdadeira colcha de retalhos. O bom é que essa concatenação resultou num dos melhores romances da autora, ideal para quem vai começar a ler a poderosa e influente Clarice Lispector.

domingo, 17 de julho de 2016

Comentando "A legião estrangeira",de Clarice Lispector

Edição de 1991:primorosos contos clariceanos
No livro de contos A legião estrangeira encontram-se alguns dos textos mais aclamados de Clarice Lispector.  A publicação desta obra data do ano de 1964, mesma época do lançamento do romance A paixão segundo G.H., motivo pelo qual, segundo apontam algumas pesquisas, A legião estrangeira teve menor repercussão nesse período, ou seja, devido o furor em torno de A paixão segundo G.H., livro considerado por muitos a sua obra-prima.
Nos textos de A legião estrangeira encontramos todos os elementos que norteiam a escritura clariceana, tais como as epifanias, por exemplo, e também é bem recorrente, quase como uma obsessão, a temática do “olhar”, o que podemos verificar no enigmático conto “O ovo e a galinha”, este, tido pela própria autora um enigma. Benedito Nunes, grande referência em assuntos clariceanos, considera “O ovo e a galinha” um exercício de meditação. No conto, a narradora tece inúmeras conjecturas existencialistas: “O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere.” (p. 47) Embora que eu esteja achando pêlo em ovo, absorvo desse texto o próprio enigma de viver; o medo do incerto futuro; a falta de autenticidade das relações humanas, esta devido ao que “vejo”, certa altura do conto a narradora-personagem diz: “ (...) ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto.” (p. 52). Entretanto, este é um texto que abarca inúmeras possibilidades de análise, uma vez que ao “ver” o ovo a personagem- narradora traz à narrativa a galinha, fazendo comparações entre ambos, nas quais a galinha é sempre inferiorizada: “ O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida.” (p. 48) arrisco-me a ligar pequenos fios soltos, valendo-me do fato de que em meados do século XX, época em que o conto foi escrito, a mulher não tinha emancipação, apenas o homem era o que podia mandar e desmandar, por isso, o ovo é análogo ao homem, como a galinha à mulher, pois embora o ovo seja o objeto de “meditação”, a narradora-personagem entende penosamente os sentimentos da galinha:  “Sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto,” etc. (p. 49) Não obstante, sabe até o que cacareja a galinha: “Etc., etc., etc.”

O ovo e a galinha é de uma grande estranheza, não? Pois bem, focando na palavra “estrangeira” vemos que ela também pode significar “estranho”, desconhecido, entre outras acepções. Os outros textos dessa coletânea trazem “situações” mais convencionais, por exemplo, “Macacos”,no qual uma dona de casa leva uma macaquinha para casa, para o maravilhamento de seus filhos; “Viagem a Petrópolis”, onde uma velhinha, “doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo.” (p. 57); “Uma amizade sincera”, no qual dois jovens amigos procuram avidamente comprovar sua amizade, embora bastava saber que eram amigos verdadeiros. Há também textos que evidenciam o carácter metalinguístico, por exemplo, “A quinta história”, onde a protagonista, a partir do mesmo começo, tece inúmeros desdobramentos para contar uma história: “verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (p. 74) Vale ressaltar que mesmo nesses referidos contos, sempre há um quê de estranhamento, em “Macacos”, após a mãe noticiar a morte da macaquinha Lisette, ela ouve do filho mais velho: “ Você parece tanto com Lisette!” em resposta: “Eu também gosto de você”. (p. 45). Vale lembrar que muitas das personagens que compõem essa “Legião estrangeira” são crianças, mas não se enganem que sejam crianças fofinhas e inocentes, no conto de abertura, por exemplo, a protagonista é uma aluna esperta e petulante e vive a pirraçar o professor. No entanto, o melhor exemplo de que as crianças não sejam tão inocentes está no conto que intitula a coletânea, sim, o conto “A legião estrangeira” é mais um texto clariceano que tira o leitor do prumo à medida que o olhar e a percepção apurada das personagens servem de espinha dorsal da narrativa. 

domingo, 3 de julho de 2016

Comentando, "Onde estivestes de noite", de Clarice Lispector

Recente edição da Editora Rocco
Onde estivestes de noite é um livro de contos de Clarice Lispector publicado em 1974, ano de publicação do ousado e menosprezado A Via Crucis do corpo. Ambas as coletâneas possuem em comum o estilo mais simples e direto na construção das narrativas, bem como as temáticas do desejo sexual na velhice, dentre outros aspectos, como o reaproveitamento de textos publicados em outras obras, com alterações no título, por exemplo, método que sugeria a urgência que Clarice tinha em escrever para garantir sua sobrevivência. Seria isso uma “manigança”? Como a exemplo do texto “As maniganças de Dona Frosina”?
Um dos aspectos mais observados em Onde estivestes de noite é quanto a sua heterogeneidade: os dois primeiros contos lembram a estrutura dos aclamados contos de Laços de família e A legião estrangeira, diferem pelo agudo mergulho na temática da velhice, o desalento e anonimato aos quais são arrastadas as personagens Sra. Jorge B. Xavier no conto A procura de uma dignidade, que tinha desejos despudorados pelo cantor Roberto Carlos e Dona Maria Rita, no conto A partida do trem, esta, sentia-se um estorvo para sua família: “Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão.” (p. 21) Além do fato de tais personagens serem descritas de modo abjeto, através de aspectos grotescos: a Sra Jorge. B. Xavier, num dado momento do conto, vê-se de quatro comparando-se a uma cadela; Dona Maria Rita possuía uma verruga no queixo de onde saía um pelo preto e espetado, ou mesmo quando sorria evidenciando sua “areada” dentadura. “O relatório da coisa” é um conto no estilo de “O ovo e a galinha” embora, com ritmo mais lento.
Onde estivestes de noite, o conto homônimo, é antecedido por quatro epígrafes, e o  que podemos esperar de um texto que se inicia com “A noite era uma possibilidade excepcional.”?  Sob a pena de Clarice Lispector, espera-se tudo. Menos a obviedade das coisas. Então, é sob uma atmosfera onírica que o leitor adentra nesse texto, no qual uma personagem andrógina, “Ele-ela” ou “Ela-ele” lidera uma subida à montanha onde coisas impensáveis acontecem, uma vez suspensa as regras do Dia, pois a noite abriam-lhes todas as possibilidades. “E não havia repressão: livres!” (p. 45) Essa liberdade aparece na aparente desestrutura do texto, ora a narrativa aborda as “maldições” ocorridas sob o comando de “Ele-ela” ou “Ela-ele”, ora são descritos personagens na luz do dia, com suas obrigações e sentimentos comuns. Aliás, nesse conto, onde prevalece a lógica do sonho, aparecem citações de Goethe, anúncios de rádio e até Cristovão Colombo dá o ar da graça!

Passada a vertigem, o susto ocasionado pela criatividade insana de Clarice em escrever textos tal o conto homônimo, os contos seguintes apontam uma calmaria, a busca pelo “estado de graça” ou mesmo, em alguns casos parecem mais crônicas, vide o texto “Uma tarde plena” ou mesmo “o morto no mar da Urca”, neste, a narradora- personagem recebe a notícia da morte de um homem por afogamento e faz um paralelo ao seu momento presente, em que estar a provar um vestido na costureira. Aliás, o que ocorre é que ao provar o vestido recebeu a trágica notícia, fato que modificou uma simples ida à Urca pra provar o vestido, pois a remeteu a reflexões sobre a morte. Este e todos os textos do volume, configuram a força que a literatura clariciana, feita nos últimos anos de sua vida possui. Podem ser escritos “na ponta dos dedos”, como relembra Vilma Arêas, porém longe de serem menos relevantes. Onde estivestes de noite é tão forte literatura, que alguns pesquisadores, leitores de Clarice, desvencilharam-se, do culto às obras aclamadas da autora, optando por pesquisarem sobre àquelas consideradas menores, Onde estivestes de noite, foi objeto de um primoroso estudo de Joel Rosa de Almeida, cuja pesquisa intitula-se: A experimentação do grotesco em Clarice lispector.

domingo, 19 de junho de 2016

Comentando "Os da minha rua", de Ondjaki

Livro de contos, memórias de Ondjaki
Uma infância plena e emocionante, é isso que transborda em todos os contos de “Os da minha rua”, do escritor angolano Ondjaki. Não há coração gelado que não se derreta diante de estórias tão emotivas, por vezes divertidas, uma vez que, cabe à criança brincar e fantasiar no mundo que a cerca. Os vinte e dois contos de “Os da minha rua” abarcam uma fase do “antigamente”, mas este é um tempo que persiste intensamente vivo na memória do menino Ndalu, ou Dalinho personagem-narrador de todos os textos dessa obra. Além de ser um tempo que passava devagar para estas crianças, segundo elas: “(...) vivíamos num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade.” (pag. 59)
“Os da minha rua” refere-se aos vizinhos e os parentes  que acompanharam o menino Ndalu nas mais diversas travessuras, ou apenas vivenciaram acontecimentos importantes numa fase em que se está a conhecer as pessoas e suas relações com o mundo. Alguns textos dessa obra lembram aquelas redações no estilo “minhas férias”, no entanto, a escrita de Ondjaki, além de ser guiada pela emoção de uns “olhinhos infantis”, a mesma é construída numa verve poética consistente. De conto em conto o leitor toma conhecimento da maestria de Ondjaki em destilar a leveza, a curiosidade, as traquinagens dos tempos de antigamente e como os cheiros, os sabores dos lugares da infância emanam de cada memória evocada. A honestidade com a qual são narradas as estórias, por vezes, descambam para o humor, seja pela sinceridade das crianças, que ainda não atinam para as regras do mundo adulto como,  por exemplo, na inusitada pergunta do “candengue” Jika a Ndalu: “Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa?”, cujo texto também aborda a fantasia do mesmo pequeno Jika, que salta do telhado com um guarda-chuva numa tentativa de voar. O toque de humor também surge na personagem “queixinhas”, ou seja, a que conhecemos aqui no Brasil como “dedo-duro”. Em algumas situações sente-se pena da personagem “queixinhas”, como a dizermos que é porque são sinceras, dai entregam seja quem for. Por exemplo, no conto “Jerri Quan e os beijinhos na boca”, onde o “candengue” Ndalu , acaba “dedurando” o casal beijoqueiro ao pai da moça, ao atender ao telefonema, pois segundo o narrador “É que nós, as crianças, gostamos de responder só assim sem pensar muito no que afinal vamos dizer." (pag. 14) Já em “Manga verde e o sal também”, “Dalinho” não titubeia em fazer queixinhas e ainda paga os insultos na mesma moeda, como o troco dado em Madalena Kamussekele, ele prometera que se Madalena lhes desse sal para comerem com manga verde, Tia Maria e a avó Nhé não ficariam sabendo. Ao alertar Madalena para que apronte a mesa do jantar para a chegada da tia e da avó, Madalena responde-lhe mal: “A conversa ainda não chegou na casa de banho.” Foi o que bastou pra Dalinho fazer queixinhas e utilizar a mesma resposta de Madalena quando esta estava levando cintadas da tia Maria.
As visitas a parentes distantes, as diversas situações na sala de aulas, as visitas indesejadas dissimulando algum interesse, a telenovela Roque santeiro, dentre tantas vivências descritas em “Os da minha rua” fazem destes contos leitura obrigatória, seja ao público infantojuvenil, seja ao leitor adulto que poderá também relembrar a sua infância. Ressalto que toda a fantasia infantil, a leveza de algumas situações que perpassa quase todos os textos não resiste à densidade, à tristeza descrita no conto que encerra essa obra, “Palavras para o velho abacateiro”, cujo texto aborda, entre “lágrimas e chuva” a noção de despedida, justamente nesse texto que Ondjaki lança mão de um intenso lirismo, fato que o faz figurar entre os escritores africanos mais conhecidos no Brasil.


domingo, 12 de junho de 2016

Comentando "Antes do Baile Verde"

Edição recente da coletânea
      Antes do Baile Verde figura entre as principais obras de Lygia fagundes Telles. Na coletânea de contos, o leitor é apresentado a uma gama de personagens diversos que vão do motorista de caminhão a músicos, estes, incluindo saxofonistas e cantoras de óperas, dentre tantos outros tipos comuns como casais de namorados em crise, ou mesmo familiares em conflito.
Os contos de Lygia aparentemente soam simples, apesar da sofisticação da autora que já introduz o leitor na atmosfera do texto, ou seja, esqueça uma introdução comum ao que se espera da contação de estória. Assim como Clarice Lispector, entender, pegar a linguagem de Lygia requer a releitura do texto. Os conflitos humanos são comuns, entretanto sob a "pena" da escritora toma dimensões impensáveis, as mais surpreendentes. Talvez pela disfarçada sondagem psicológica de algumas personagens, que por vezes são apresentadas em forma de obsessão, como no conto A janela, texto onde uma personagem, inserida num quarto fita a janela e, num tom  obscuro, rememora um passado onde avistava-se uma roseira daquela janela. Insere-se ai, um quê de suspense, um homem "estranho" parecendo evocar um luto e sua interlocutora, a dona do quarto, a agir com naturalidade. Esse suspense é narrado com a maestria característica da autora que termina o conto de modo coerente com o restante da narrativa, aliás, esta é só uma das opções de terminar bem um conto. Também nos textos com finais em aberto, por exemplo, o conto que nomeia a coletânea, o resultado é mais instigante ainda, meio que cinematográfico, pois imediatamente ao terminar a leitura do conto, visualizei (involuntariamente) as lantejoulas rolando pela escada. Que poder literário tem Lygia!
Bem, já que falei do conto, Antes do Baile Verde, acrescentando mais sobre o mesmo, ressalto que foi um dos textos premiados da autora. Basicamente, temos uma patroa com sua empregada envoltas com os preparativos da fantasia que Tatisa, a patroa, usará no baile verde de carnaval. Aliás, a patroa é uma moça mimada, fútil, o que se percebe no fato de ficar a toda hora acelerando Lu, sua empregada, para que termine com a fantasia. O pior, é que no quarto ao lado está o pai de Tatisa agonizando. Motivo que eleva a tensão no (do) conto a proporções insanas. Tatisa não quer perder o baile por nada, tenta convencer sua empregada a passar a noite com o pai, mas até onde vai seu direito de patroa? E o amor filial? Não teria, sua empregada, o mesmo direito de ir ao baile? Há horas em que Tatisa expõe sua arrogância, dirigindo-se à empregada: "Ih, como é difícil conversar com gente ignorante." Em suma, o conto abarca questões tanto sociais quanto psicológicas, tendo em vista o ethos das personagens, a patroa soberba e a empregada vulgar, esta que bebia cerveja e tinha um namorado de nome Raimundo.
Seria tarefa difícil escolher quais os melhores contos de Antes do Baile Verde, todo texto de Lygia exerce tamanho fascínio, ou seja, sua criatividade emana da entrelinha, da aparente banalidade descrita que descamba para um segredo maior, em alguns casos para enredos fatais, sombrios como por exemplo, "Venha Ver o Pôr do Sol, conto no qual evoca um Edgar Allan Poe sem igual. Outros textos abarcam o alento, ao qual a maioria dos indivíduos se agarram para prosseguir ante os infortúnios e as incertezas, como em Natal na Barca, texto pungente também, e inquietante. Não é a toa que Lygia figura ao lado de Clarice, Hilda Hilst, dentre outras grandes escritoras brasileiras.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Impressões sobre Gigantes- Cinco amigos. Uma história.

Gigantes: obra lançada em 2015
A frequente curiosidade para conferir o que acontece no cenário da literatura contemporânea brasileira levou-me á leitura de Gigantes - cinco amigos, uma história, da autoria de Pedro Henrique Neschling. Uma boa novidade, considerando meu desconhecimento da investida de Pedro nesse viés artístico. Trata-se de uma narrativa fluida, de estilo simples uma vez que assumindo as perspectivas das personagens, deflagrando os vários acontecimentos, os objetivos e ilusões que se passam por volta de uma década, sua linguagem é calcada tendo em vista cada uma das cinco personagens principais.
O título, Gigantes, é uma alusão ao sonho de todo indivíduo que idealiza, busca a realização de seus grandes objetivos, o que é comum no término da vida escolar, onde temos que decidir que faculdade fazer, em que investir, o que fazer a partir de então? São cinco amigos de escola que, após a festa de formatura, dispersam-se, seja por questões de ideais diferentes ou por motivo de deslizes, como a separação do casal Fernando e Duda, o que nos é conhecido logo no início do romance, quando Lipe, fiel amigo de Duda, delata a traição de Fernando, este, um aspirante a uma brilhante carreira no cinema. Doravante, é quando se concentra em Fernando, personagem culto, com seu cacoete coçando o braço, que a narrativa denota força e não sucumbe ao melodrama comum. Apesar de personagens descontraídos, como Zidane; românticos e certinhos, como Duda e o amigo Lipe, é em Fernando com sua percepção apurada da realidade, seu gosto pela arte, que observamos a inquietação do indivíduo do nosso conturbado tempo. Outro aspecto positivo, de quando a narrativa concentra-se em Fernando, é que é através desse personagem que vemos o "glamour" do mundo das celebridades cair por terra, ou melhor, tudo se mostra fútil, superficial, caem as máscaras, Fernando incomoda-se pelo fato de algumas celebridades cumprimentarem apenas com um "oi", como se todos tivessem a obrigação de conhecer-lhes. Aliás, adentrando e convivendo com o meio artístico, depara-se com disparates como a pretensão de alguns atores que deturpam uma obra canônica, além de não primarem pela arte, mas pelo lucro.
       Outra personagem interessante de Gigantes, é Camila, o pivô da separação do casal Duda e Fernando.
 Camila é a fome de viver, o destemor, mesmo que por vezes beire a inconsequência. Nem boa, nem má, perfeitinha? jamais. Camila não deixa passar oportunidades, mas sabe até onde ir com suas atitudes. Cruzando oceanos, experimentando sabores, cheiros diversos, Camila foi até Portugal, um lugar "gira" na expressão da terrinha e lá despertou para outros desejos que até então não tinha experimentado, lá conhece uma paixão pra lá de tórrida. Além do fato da narrativa trabalhar as questões linguísticas, ou seja, lança mão, em algumas passagens, do português falado em Portugal e dá-lhe ênclises, como nas declarações, "amo-te, miúda". Claro que nem tudo são flores nos caminhos de Camila, fortes acontecimentos durante sua morada em Portugal, exigirão muita determinação de sua parte. E mais uma vez ela trará á tona sua fortaleza.
Gigantes, consiste numa narrativa ágil, as peripécias são alternadas, de modo que são deflagradas acontecimentos relevantes na vida dos cinco personagens, mesmo que ambos pouco se cruzem depois da formatura. Outro ponto assertivo da narrativa de pedro Henrique Neschling, são os finais dos capítulos, sempre apontando para uma resolução do impasse contado. Doravante, nas vivências de Lipe, que aguenta chiliques de seu chefe e seu "sutil" bordão, é chegada a hora em que o belo e recatado mocinho ( do lar?) manda um, mesmo em pensamento, "meu cú", após uma insólita situação. O aspecto estético, referente ao término do capítulo, sugere que Neschling domina, também, a escrita do conto. Gigantes, é uma narrativa envolvente. o recorte de drama das personagens, as pitadas de leveza, sarcasmo denotam a construção de uma prosa segura e que chegou no cenário literário no momento certo.

sábado, 28 de maio de 2016

Rainha

Elza Soares: cantando até o fim
Criei uma certa expectativa para esse show, tinha ouvido e gostado do álbum que a artista estava divulgando shows a fora. Isso sem contar o quão aclamado fora em seu lançamento, algo como uma obra que já nasce clássica, sem mais delongas, falo de "A mulher do fim do mundo", da Elza Soares. Em pensar que anos atrás desperdicei o convite para vê-la cantar... foi preciso um álbum "porrada" para Elza entrar em minha vida.
O show era gratuito, óbvio que um proletário f****** feito eu, só vou mesmo nessas condições, sem reclamar por ficar em pé mais de uma hora na fila para pegar o ingresso. Fico sim, lindíssimo! Sim, as companhias para o show eram as melhores. Foram dois casais e eu de abajur, apagado, mas eles possuem bom senso na medida certa para considerar minha dispensável presença, pois sou mesmo anti-social, demonstro zero de simpatia e envolvimento. Talvez por não dispor das sensações que todos tem, em suma, apático.Outrora, um primo sentenciou: "tú não és uma pessoa divertida." Bem, houve algo com que  não contava: logo ao chegarmos ao local do show, a banda estava fazendo a passagem de som, em questão de minutos adentra a caminho do palco a cantora numa cadeira de rodas, eu que até então estava fora de órbita, senti um abatimento, calafrio, enfim... indagava o quão sofrível que seriam as viagens, o trabalho de cantar por horas, para quê? Invadiu-me a Ana do conto "Amor", da Clarice Lispector, que teve um abalo em sua rotina ao se deparar com um cego mascando chiclete. Pois, teria-me esquecido que existiam cadeirantes? Fiquei ofegante... precisava ela provar pela milionésima vez seu talento? Sabia vagamente que Ela tinha um insano histórico de superação, mas nessas circunstâncias, ter de cantar sentada... imaginei um tormento gigante, eu não sabia que era Ela "A mulher do fim do mundo". E era, segundo os idealizadores desse projeto. 
Abre-se a porta para o público receber o show. Fãs mais fervorosos fincam-se ao pé do palco, meus amigos acomodam-se a um canto mais reservado, atentando para meu desprovimento de altura, eu disse, "sem problemas" (não tem mesmo) e começa o anseio para a Diva entrar com o conceitual e denso "A mulher do fim do mundo". Aplausos eufóricos, arrepiei-me todo e não foi de piedade, ao contrário, aquela que vi passar de cadeira de rodas e depois levada por duas pessoas ao palco, que me transmitiu um penar intolerável, agora emergiu noutra cadeira, a do palco. Não uma simples cadeira, era seu trono. Sim, pois o visual imponente com cabeleira roxa armada, maquiagem forte como sua própria expressão, um longo que arrastava-se pelo chão... e a voz, que de longínquas décadas pouco desgastou-se, fez-na assumir seu posto de Rainha. Não uma rainha de um reino com mínimos problemas, mas a rainha que canta o caos, as últimas consequências. "A mulher do fim do mundo" canta com um potente grave o que a natureza humana é capaz de fazer no mundo. Dai a violência contra a mulher, de Maria da vila Matilde; a destruição, na apocalíptica Luz vermelha; a questão de gênero é tematizada em Benedita. São faixas que passeiam pelo rock, samba, pitadas de tango, eletrônico e afins. Tudo fruto da empreitada de músicos paulistas com a cantora carioca, que é, até onde suas forças permitir, "A mulher do fim do mundo". 
O show foi insano, amigos e eu inebriados conduzidos pela banda e pela Rainha que entre uma música e outra pedia" barulho" e mandava beijinhos. E atenta ao frágil momento político pelo qual passa o país, não titubeou e alertou assertivamente a plateia, além de dar rápidas explicações sobre algumas faixas desse excelente trabalho que é "A mulher do fim do mundo." Na faixa homônima, Elza pede que a deixem cantar até o fim. Ainda bem.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Educar do começo

Capa da 1° edição do livro de Muniz Dias
Muito se tem falado em discurso de ódio, sobre veículos informativos carregados de sensacionalismo, em fascismo, dentre outros fatores que vão contra a liberdade individual, contra os ideais de humanismo pelo qual a educação ou algumas religiões, vide o Budismo, lutam há séculos e mais séculos num incessante e árduo combate, visto a própria complexidade do ser humano. Por mais avanços que a humanidade consiga, em diversas áreas, as chagas do machismo, da corrupção, da inexistência de um Estado laico de fato, constituem uma forte barreira contra a dignidade do indivíduo que esteja fora dos padrões pré-estabelecidos. Como é fato que tudo esbarra na esfera educativa, sobretudo no déficit educacional, alguns pesquisadores e literatos criaram projetos visando o combate ao preconceito, sobretudo, o ligado a questão de gênero que é um dos mais sensíveis de se enfrentar devido ao despreparo das famílias e de alguns educadores em trabalhar tal questão.
O escritor Roberto Muniz Dias, comprometido não apenas com o fazer literário, mas com a luta por uma educação mais inclusiva e eficiente, levantou uma pesquisa sobre como alguns discursos são disseminados na sociedade, desde a mais tenra idade, isto é, seu trabalho analisa as ideologias transmitidas nos contos de fadas, desde séculos de transmissão incontestes, como se não houvesse os avanços da humanidade ou não levassem em conta o comportamento de outras espécies animais. Os objetos de sua pesquisa correspondem a um contraponto ao conto de fada tradicional, não no que tange ao formato, mas no que diz respeito às ideologias que pretendem ser desconstruídas: são os livros King and King (de Linda de Haan e Stern Nijland) e “And Tango makes three” (de Just Richardson e Peter Parnell). O primeiro narra a estória de um príncipe, desenhado pelos autores com certa afetação, que se casa com um príncipe, irmão de uma das princesas que pretendiam desposá-lo. Já “And Tango makes three” narra o caso verídico de dois pinguins machos que, estando sempre juntos em todas as atividades, tentam chocar um ovo, (na verdade, era uma pedra), fato observado pelo cuidador do zoológico este, comovido, colocou um ovo abandonado por um casal de pinguins à disposição deles.
A apurada pesquisa de Muniz Dias resultou no livro "O príncipe, o mocinho ou o herói podem ser gays", trabalho que na esteira de obras como King and King constituem numa ruptura ao conto de fada tradicional, uma vez que os clássicos como, João e o pé de feijão, Chapeuzinho vermelho, etc, abarcam somente, do ponto de vista discursivo, os aspectos biológicos da natureza humana, ou seja, repassam ideais do que se esperava outrora (épocas de origem dos contos de fadas tradicionais) do homem e da mulher. Do homem se esperava bravura, domínio, etc, da mulher a delicadeza e a submissão ao homem. Ao longo da história os discursos vão sendo redefinidos, por exemplo: as mulheres lutaram pela emancipação; homossexuais lutam por direitos iguais, assim como os negros lutam para apagar resquícios do passado escravagista. A escalada humana é isso, um desbravamento de potencial tendo em vista a própria dignidade do individuo em conjunto aos demais. Se a sociedade é cada vez mais pluralizada é devido à luta do homem em sua redefinição ou adequação ao meio que o circunda. Não é uma negação de aspectos biológicos, apenas um olhar para além de suas possibilidades, que não se restringem ao termo binário macho e fêmea.
A obra em questão “O príncipe, o mocinho ou o herói podem ser gays” vai ao encontro das propostas de ensino construtivistas, isto é, que trabalham a realidade das crianças e jovens. É sabido que os núcleos familiares são alternativos, há a família tradicional, constituída pelo pai e a mãe, como também, há  filhos de casais divorciados, filhos de relacionamentos homoafetivos e está mais que provado que isso não é obstáculo para que os filhos cresçam saudáveis e se tornem futuros cidadãos promissores. Cabe às entidades educativas apropriar-se de metodologias que abarcam as ideologias dessa sociedade pluralizada, não mais os ideais retrógrados que ferem as conquistas pós-modernas. Afinal, como consta no prefácio do livro, feito por Adailson Moreira: “A criança não possui preconceitos. Ela ainda está formando seus conceitos. Nada é pré. Pode ser ensinada a respeitar a diversidade e conviver com a diferença, o que quase sempre, faz muito bem, ainda que do seu jeito” A fala do psicólogo e professor é um alerta para os atos de bullying, tão comuns na fase infanto-juvenil. Dai a importância de obras como a de Muniz Dias na construção de uma sociedade menos preconceituosa, tendo por base a esfera educacional.


segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O amor em tempos de guerra

A obra em sua 2° edição
Marcelino Freire é um dos escritores mais notáveis da atualidade. Vencedor de prêmio Jabuti; organizador da balada literária; dono de um estilo o qual alguns chamam de “transgressor”, enfim, tendo em vista a obra Amar é crime, torna-se notório a importância de sua escrita no cenário da literatura brasileira, uma vez que sua obra agrupa-se, devido à temática, ora  à literatura queer, ora  à literatura de denúncia social, ou ambas citadas.
A marginalidade, o abjeto, o profano, são matéria prima farta na prosa freiriana. Marcelino traz a voz das periferias das grandes cidades. Locus “preferido” dos crimes sejam passionais, ou de outra ordem. O conto “crime” se encarrega disso, aliás, bem mais que isso: a personagem desse texto relata à mãe um plano mirabolante para se vingar da namorada. Num ritmo frenético, onde discorre sobre as atrocidades que faria com a refém, sua namorada, o plano vai se tornando cada vez mais ambicioso à medida que a visibilidade deste aumenta, ou seja, com a chegada de vizinhos, parentes e finalmente, tomando conta dos principais noticiários do país: “(...) mãe, eu vou ficar famoso, vem o SBT, a Record, a Rede Globo, a polícia no meio do esgoto, no megafone, me chamando, Roni, Roni, Roni, rá, aqui é o capitão...” (p.57) Lançando mão da oralidade, característica da prosa freiriana, “Crime” abarca o aspecto provocativo de Marcelino, seja visando os aspectos linguísticos, oralidade, humor corrosivo, etc, seja pelo enredo surpreender: no referido conto a personagem decide expor, a partir do seu crime a calamidade na qual se encontram os marginalizados pela sociedade: “ (...) eu vou aproveitar todo o acontecimento pra falar da sacanagem, da falta de educação, de saneamento, do desmoronamento, da chuva quando vem e molha e engole o povo... eu quero que o governador apareça,...” (p.57) No entanto, a imprevisibilidade narrativa, outra marca de Marcelino, ainda reserva “sarcásticas” surpresas ao final de “Crime”, é ler pra amar, digo pra crê.


As personagens de Amar é crime são, em sua maioria, o negro marginalizado, o homossexual, a travesti, a garota de programa, etc. A ritmada prosa freiriana, encarrega-se de dar a voz aqueles a quem a sociedade (outrora?) deu as costas. Por isso a urgência em que são apresentadas; devido à opressão, os sentimentos são defendidos com unhas e dentes, posto que “amar” não chega ao entendimento de muitos, o que acarreta no combate: o crime, a desordem, posto que amar é superar as mazelas do próprio indivíduo, da mesquinhez humana. Aliás, esses textos acabam por soar irônicos: como amar em meio ao caos dos nossos dias? Amar é crime, configura um fiel retrato do nosso conturbado tempo. Mas nem tudo está perdido, é preciso olhar para as margens, para aqueles que buscam o mínimo que uma vida digna possa oferecer. Eis, em Amar é crime, uma literatura não só de entretenimento, mas de denúncia e quiçá, de esperança.