sábado, 30 de julho de 2016

Comentando "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres"

  Edição da coleção da Folha de São Paulo
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é o sexto romance de Clarice Lispector e foi lançado em 1969. Essa prosa, embora não abarque a profundidade de uma G.H ou mesmo da Joana da segunda parte de Perto do coração selvagem, é constituída sob uma atmosfera pungente, mas poética também. Sua protagonista, Lóri, é uma mulher solitária que sofre com a dor de existir, ou seja, como outras “mulheres de Clarice”, Lóri, sente-se em descompasso com o mundo, com as outras pessoas, fato que pode mudar quando ela conhece Ulisses. É o início de sua aprendizagem.
A protagonista desse romance é uma das personagens mais fascinantes de Clarice, Lóri, que apesar de sofrer com sua solidão, possui algo muito forte dentro de sí que é o modo de enxergar a vida, pois é uma mulher que procura fazer parte da “coisa” vista. Desse modo, uma noite de luar proporciona-lhe um forte encantamento, até pelo motivo dela considerar-se uma pessoa lunar. Essa solidão voluntária, não faz de Lóri uma pessoa egoísta, pois sendo professora primária, ela sai um pouco da sua “dor de existir” e interage com a sociedade.  A dor de Lóri só poderá ser diminuída quando ela integrar-se à vida pelo amor de um homem: Ulisses, este, também é professor, mas de filosofia numa universidade e apesar de gostar de Lóri, percebe que ela ainda não está pronta para iniciarem um relacionamento. É quando começa o processo de aprendizagem para que Lóri esteja pronta para o amor, pois até então a própria não se considerava apta, mediante sua inadaptação aos modos de existir banalizados. Não que seja “pessoa do outro mundo” mas Lóri não se prende à uma vida comum, o que notamos, por exemplo, quando ela tenta travar contato com uma mulher na rua à espera de condução, o que faz comentando sobre a demora do ônibus e elogiando o vestido da moça, mas  quando sua interlocutora permitiu-se dar-lhe atenção,  Lóri distrai-se com as explicações:
     “Lóri não ouviu mais nada: sorria beatificada: entrara em contato com uma estranha. Interrompeu-a um pouco bruscamente mas om uma doçura de gratidão na voz:
 -Adeus. Obrigada, muito obrigada.
A moça respondeu surpreendida:
-Não quer saber do endereço da loja onde compro?
- Não precisa, obrigada. (p. 117)
As “faltas”, a inadequação de Lóri ante as coisas mais triviais são reforçadas por Ulisses, este não economiza sinceridade e aponta os defeitos da moça, embora que não seja por arrogância ou maldade, pois Ulisses nutre um amor por Lóri e permite-se esperar para que ela fique pronta para vivenciarem o amor mútuo que sentem. Nesse período, da aprendizagem, Lóri arca com a difícil tarefa de enfrentar seus temores, coisas simples, mas como trata-se de “persona” super sensível, um mero acontecimento como ir à praia, não é somente ir até lá: Lóri vai ao mar logo que o dia amanhece e entrega-se a ele numa intensidade de momento epifânico, como se se fundisse àqueles elementos naturais; como um microcosmo e o macrocosmo, expressões que também aparecem nessa narrativa tal é a imersão da personagem nos mistérios da vida.


Cabe lembrar aqui, que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é um romance constituído pela junção de algumas crônicas da autora, como dissera o professor Joel Rosa, especialista em Clarice, uma verdadeira colcha de retalhos. O bom é que essa concatenação resultou num dos melhores romances da autora, ideal para quem vai começar a ler a poderosa e influente Clarice Lispector.

domingo, 17 de julho de 2016

Comentando "A legião estrangeira",de Clarice Lispector

Edição de 1991:primorosos contos clariceanos
No livro de contos A legião estrangeira encontram-se alguns dos textos mais aclamados de Clarice Lispector.  A publicação desta obra data do ano de 1964, mesma época do lançamento do romance A paixão segundo G.H., motivo pelo qual, segundo apontam algumas pesquisas, A legião estrangeira teve menor repercussão nesse período, ou seja, devido o furor em torno de A paixão segundo G.H., livro considerado por muitos a sua obra-prima.
Nos textos de A legião estrangeira encontramos todos os elementos que norteiam a escritura clariceana, tais como as epifanias, por exemplo, e também é bem recorrente, quase como uma obsessão, a temática do “olhar”, o que podemos verificar no enigmático conto “O ovo e a galinha”, este, tido pela própria autora um enigma. Benedito Nunes, grande referência em assuntos clariceanos, considera “O ovo e a galinha” um exercício de meditação. No conto, a narradora tece inúmeras conjecturas existencialistas: “O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere.” (p. 47) Embora que eu esteja achando pêlo em ovo, absorvo desse texto o próprio enigma de viver; o medo do incerto futuro; a falta de autenticidade das relações humanas, esta devido ao que “vejo”, certa altura do conto a narradora-personagem diz: “ (...) ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto.” (p. 52). Entretanto, este é um texto que abarca inúmeras possibilidades de análise, uma vez que ao “ver” o ovo a personagem- narradora traz à narrativa a galinha, fazendo comparações entre ambos, nas quais a galinha é sempre inferiorizada: “ O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida.” (p. 48) arrisco-me a ligar pequenos fios soltos, valendo-me do fato de que em meados do século XX, época em que o conto foi escrito, a mulher não tinha emancipação, apenas o homem era o que podia mandar e desmandar, por isso, o ovo é análogo ao homem, como a galinha à mulher, pois embora o ovo seja o objeto de “meditação”, a narradora-personagem entende penosamente os sentimentos da galinha:  “Sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto,” etc. (p. 49) Não obstante, sabe até o que cacareja a galinha: “Etc., etc., etc.”

O ovo e a galinha é de uma grande estranheza, não? Pois bem, focando na palavra “estrangeira” vemos que ela também pode significar “estranho”, desconhecido, entre outras acepções. Os outros textos dessa coletânea trazem “situações” mais convencionais, por exemplo, “Macacos”,no qual uma dona de casa leva uma macaquinha para casa, para o maravilhamento de seus filhos; “Viagem a Petrópolis”, onde uma velhinha, “doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo.” (p. 57); “Uma amizade sincera”, no qual dois jovens amigos procuram avidamente comprovar sua amizade, embora bastava saber que eram amigos verdadeiros. Há também textos que evidenciam o carácter metalinguístico, por exemplo, “A quinta história”, onde a protagonista, a partir do mesmo começo, tece inúmeros desdobramentos para contar uma história: “verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (p. 74) Vale ressaltar que mesmo nesses referidos contos, sempre há um quê de estranhamento, em “Macacos”, após a mãe noticiar a morte da macaquinha Lisette, ela ouve do filho mais velho: “ Você parece tanto com Lisette!” em resposta: “Eu também gosto de você”. (p. 45). Vale lembrar que muitas das personagens que compõem essa “Legião estrangeira” são crianças, mas não se enganem que sejam crianças fofinhas e inocentes, no conto de abertura, por exemplo, a protagonista é uma aluna esperta e petulante e vive a pirraçar o professor. No entanto, o melhor exemplo de que as crianças não sejam tão inocentes está no conto que intitula a coletânea, sim, o conto “A legião estrangeira” é mais um texto clariceano que tira o leitor do prumo à medida que o olhar e a percepção apurada das personagens servem de espinha dorsal da narrativa. 

domingo, 3 de julho de 2016

Comentando, "Onde estivestes de noite", de Clarice Lispector

Recente edição da Editora Rocco
Onde estivestes de noite é um livro de contos de Clarice Lispector publicado em 1974, ano de publicação do ousado e menosprezado A Via Crucis do corpo. Ambas as coletâneas possuem em comum o estilo mais simples e direto na construção das narrativas, bem como as temáticas do desejo sexual na velhice, dentre outros aspectos, como o reaproveitamento de textos publicados em outras obras, com alterações no título, por exemplo, método que sugeria a urgência que Clarice tinha em escrever para garantir sua sobrevivência. Seria isso uma “manigança”? Como a exemplo do texto “As maniganças de Dona Frosina”?
Um dos aspectos mais observados em Onde estivestes de noite é quanto a sua heterogeneidade: os dois primeiros contos lembram a estrutura dos aclamados contos de Laços de família e A legião estrangeira, diferem pelo agudo mergulho na temática da velhice, o desalento e anonimato aos quais são arrastadas as personagens Sra. Jorge B. Xavier no conto A procura de uma dignidade, que tinha desejos despudorados pelo cantor Roberto Carlos e Dona Maria Rita, no conto A partida do trem, esta, sentia-se um estorvo para sua família: “Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão.” (p. 21) Além do fato de tais personagens serem descritas de modo abjeto, através de aspectos grotescos: a Sra Jorge. B. Xavier, num dado momento do conto, vê-se de quatro comparando-se a uma cadela; Dona Maria Rita possuía uma verruga no queixo de onde saía um pelo preto e espetado, ou mesmo quando sorria evidenciando sua “areada” dentadura. “O relatório da coisa” é um conto no estilo de “O ovo e a galinha” embora, com ritmo mais lento.
Onde estivestes de noite, o conto homônimo, é antecedido por quatro epígrafes, e o  que podemos esperar de um texto que se inicia com “A noite era uma possibilidade excepcional.”?  Sob a pena de Clarice Lispector, espera-se tudo. Menos a obviedade das coisas. Então, é sob uma atmosfera onírica que o leitor adentra nesse texto, no qual uma personagem andrógina, “Ele-ela” ou “Ela-ele” lidera uma subida à montanha onde coisas impensáveis acontecem, uma vez suspensa as regras do Dia, pois a noite abriam-lhes todas as possibilidades. “E não havia repressão: livres!” (p. 45) Essa liberdade aparece na aparente desestrutura do texto, ora a narrativa aborda as “maldições” ocorridas sob o comando de “Ele-ela” ou “Ela-ele”, ora são descritos personagens na luz do dia, com suas obrigações e sentimentos comuns. Aliás, nesse conto, onde prevalece a lógica do sonho, aparecem citações de Goethe, anúncios de rádio e até Cristovão Colombo dá o ar da graça!

Passada a vertigem, o susto ocasionado pela criatividade insana de Clarice em escrever textos tal o conto homônimo, os contos seguintes apontam uma calmaria, a busca pelo “estado de graça” ou mesmo, em alguns casos parecem mais crônicas, vide o texto “Uma tarde plena” ou mesmo “o morto no mar da Urca”, neste, a narradora- personagem recebe a notícia da morte de um homem por afogamento e faz um paralelo ao seu momento presente, em que estar a provar um vestido na costureira. Aliás, o que ocorre é que ao provar o vestido recebeu a trágica notícia, fato que modificou uma simples ida à Urca pra provar o vestido, pois a remeteu a reflexões sobre a morte. Este e todos os textos do volume, configuram a força que a literatura clariciana, feita nos últimos anos de sua vida possui. Podem ser escritos “na ponta dos dedos”, como relembra Vilma Arêas, porém longe de serem menos relevantes. Onde estivestes de noite é tão forte literatura, que alguns pesquisadores, leitores de Clarice, desvencilharam-se, do culto às obras aclamadas da autora, optando por pesquisarem sobre àquelas consideradas menores, Onde estivestes de noite, foi objeto de um primoroso estudo de Joel Rosa de Almeida, cuja pesquisa intitula-se: A experimentação do grotesco em Clarice lispector.