sábado, 28 de maio de 2016

Rainha

Elza Soares: cantando até o fim
Criei uma certa expectativa para esse show, tinha ouvido e gostado do álbum que a artista estava divulgando shows a fora. Isso sem contar o quão aclamado fora em seu lançamento, algo como uma obra que já nasce clássica, sem mais delongas, falo de "A mulher do fim do mundo", da Elza Soares. Em pensar que anos atrás desperdicei o convite para vê-la cantar... foi preciso um álbum "porrada" para Elza entrar em minha vida.
O show era gratuito, óbvio que um proletário f****** feito eu, só vou mesmo nessas condições, sem reclamar por ficar em pé mais de uma hora na fila para pegar o ingresso. Fico sim, lindíssimo! Sim, as companhias para o show eram as melhores. Foram dois casais e eu de abajur, apagado, mas eles possuem bom senso na medida certa para considerar minha dispensável presença, pois sou mesmo anti-social, demonstro zero de simpatia e envolvimento. Talvez por não dispor das sensações que todos tem, em suma, apático.Outrora, um primo sentenciou: "tú não és uma pessoa divertida." Bem, houve algo com que  não contava: logo ao chegarmos ao local do show, a banda estava fazendo a passagem de som, em questão de minutos adentra a caminho do palco a cantora numa cadeira de rodas, eu que até então estava fora de órbita, senti um abatimento, calafrio, enfim... indagava o quão sofrível que seriam as viagens, o trabalho de cantar por horas, para quê? Invadiu-me a Ana do conto "Amor", da Clarice Lispector, que teve um abalo em sua rotina ao se deparar com um cego mascando chiclete. Pois, teria-me esquecido que existiam cadeirantes? Fiquei ofegante... precisava ela provar pela milionésima vez seu talento? Sabia vagamente que Ela tinha um insano histórico de superação, mas nessas circunstâncias, ter de cantar sentada... imaginei um tormento gigante, eu não sabia que era Ela "A mulher do fim do mundo". E era, segundo os idealizadores desse projeto. 
Abre-se a porta para o público receber o show. Fãs mais fervorosos fincam-se ao pé do palco, meus amigos acomodam-se a um canto mais reservado, atentando para meu desprovimento de altura, eu disse, "sem problemas" (não tem mesmo) e começa o anseio para a Diva entrar com o conceitual e denso "A mulher do fim do mundo". Aplausos eufóricos, arrepiei-me todo e não foi de piedade, ao contrário, aquela que vi passar de cadeira de rodas e depois levada por duas pessoas ao palco, que me transmitiu um penar intolerável, agora emergiu noutra cadeira, a do palco. Não uma simples cadeira, era seu trono. Sim, pois o visual imponente com cabeleira roxa armada, maquiagem forte como sua própria expressão, um longo que arrastava-se pelo chão... e a voz, que de longínquas décadas pouco desgastou-se, fez-na assumir seu posto de Rainha. Não uma rainha de um reino com mínimos problemas, mas a rainha que canta o caos, as últimas consequências. "A mulher do fim do mundo" canta com um potente grave o que a natureza humana é capaz de fazer no mundo. Dai a violência contra a mulher, de Maria da vila Matilde; a destruição, na apocalíptica Luz vermelha; a questão de gênero é tematizada em Benedita. São faixas que passeiam pelo rock, samba, pitadas de tango, eletrônico e afins. Tudo fruto da empreitada de músicos paulistas com a cantora carioca, que é, até onde suas forças permitir, "A mulher do fim do mundo". 
O show foi insano, amigos e eu inebriados conduzidos pela banda e pela Rainha que entre uma música e outra pedia" barulho" e mandava beijinhos. E atenta ao frágil momento político pelo qual passa o país, não titubeou e alertou assertivamente a plateia, além de dar rápidas explicações sobre algumas faixas desse excelente trabalho que é "A mulher do fim do mundo." Na faixa homônima, Elza pede que a deixem cantar até o fim. Ainda bem.