Edição da Rocco,1998 |
O conto A disciplina do
amor foi o primeiro contato que tive com os textos de Lygia Fagundes Telles. Na
época eu pouco entendia de literatura ou coisas mais profundas, porém aquela
estória de um cachorro que ficava esperando
seu dono voltar, sem saber que este morrera na guerra (era tempo de guerra e
ele fora convocado)me comoveu de tal modo que o nome da escritora cravou em
minha mente. O texto homônimo é escrito no formato do conto tradicional, ou
como alguns estudiosos denominam uma “short story”, entretanto, os outros textos
que integram a coletânea intitulada A disciplina do amor, não apresentam um
formato que se possa designar qual é o gênero específico, não é a toa que a
própria Lygia os chama de “fragmentos do real e do imaginário”. Ou para efeito
de simplificação, digamos que a maioria dos contos e micro - contos deste volume possuem temática crônica.
Talvez seja a “disciplina
indisciplinada” do amor que permite a narradora fitar o olho e tentar desvendar
a natureza dos animais, a exemplo dos textos sobre gatos e cachorros onde a
descrição dos movimentos é minuciosamente narrada com uma precisão de detalhes:
“O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um
pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse o sorriso do gato – ô bicho
sutil! Indecifrável. Inatingível.” (p. 10) Já disse outra escritora, a imortal
Clarice Lispector, que bicho é a forma mais acessível de gente. Pois então,
nada como um texto que evidencia as diferenças entre os animais domésticos mais
comuns: o cão e o gato. E a simplicidade e entrega com a qual Lygia inscreve
seu estilo narrativo é um deleite a quem se debruça em suas páginas. Mas não
são só os bichos que interessam à vida/escritura de Lygia Fagundes Telles: os
relatos de viagens a lugares nada clichês, como a China ou o Irã são surpreendentes
por capturar algum incidente na cena vivida/descrita pela narradora, como no
conto A mulher de Omsk, onde a narradora-personagem usa a linguagem de sinais
para se comunicar com uma mulher na Sibéria, uma vez que precisava pedir linha
e agulha para pregar os botões do casaco, pois: “Era evidente que se tratava de
uma mulher de uma só língua e essa era tão inacessível quanto a linguagem do
vento soprando lá fora.” (p.54)
Não é exagero afirmar que
A disciplina do amor figura como uma obra singular, das mais importantes da
carreira literária de Lygia. É através de A disciplina do amor que percebemos o
quanto a linha que separa a ficção da realidade é tênue por mais que seja
evidente a criatividade da autora em utilizar o verniz literário nos
irregulares fragmentos que compõem essa coletânea. Não faltam fragmentos que abordam
as leituras empreendidas pela autora e que tanto a comoveram, como atestam os
textos sobre o poeta Álvares de Azevedo, pertencente “a escola de morrer cedo”,
como também os textos que mostram a indignação perante algo mesquinho, como o sensacionalismo
midiático em torno de tragédias como as enchentes, por exemplo, ou mesmo a
apelação mostrada nos desfiles carnavalescos televisionados. Nada escapa à
percepção certeira de Lygia sobre a vida, sobre nós.
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