sábado, 29 de julho de 2017

A Disciplina do Amor, Lygia Fagundes Telles

Edição da Rocco,1998
   O conto A disciplina do amor foi o primeiro contato que tive com os textos de Lygia Fagundes Telles. Na época eu pouco entendia de literatura ou coisas mais profundas, porém aquela estória de um cachorro que ficava  esperando seu dono voltar, sem saber que este morrera na guerra (era tempo de guerra e ele fora convocado)me comoveu de tal modo que o nome da escritora cravou em minha mente. O texto homônimo é escrito no formato do conto tradicional, ou como alguns estudiosos denominam uma “short story”, entretanto, os outros textos que integram a coletânea intitulada A disciplina do amor, não apresentam um formato que se possa designar qual é o gênero específico, não é a toa que a própria Lygia os chama de “fragmentos do real e do imaginário”. Ou para efeito de simplificação, digamos que a maioria dos contos e micro - contos  deste volume possuem temática crônica.
   Talvez seja a “disciplina indisciplinada” do amor que permite a narradora fitar o olho e tentar desvendar a natureza dos animais, a exemplo dos textos sobre gatos e cachorros onde a descrição dos movimentos é minuciosamente narrada com uma precisão de detalhes: “O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse o sorriso do gato – ô bicho sutil! Indecifrável. Inatingível.” (p. 10) Já disse outra escritora, a imortal Clarice Lispector, que bicho é a forma mais acessível de gente. Pois então, nada como um texto que evidencia as diferenças entre os animais domésticos mais comuns: o cão e o gato. E a simplicidade e entrega com a qual Lygia inscreve seu estilo narrativo é um deleite a quem se debruça em suas páginas. Mas não são só os bichos que interessam à vida/escritura de Lygia Fagundes Telles: os relatos de viagens a lugares nada clichês, como a China ou o Irã são surpreendentes por capturar algum incidente na cena vivida/descrita pela narradora, como no conto A mulher de Omsk, onde a narradora-personagem usa a linguagem de sinais para se comunicar com uma mulher na Sibéria, uma vez que precisava pedir linha e agulha para pregar os botões do casaco, pois: “Era evidente que se tratava de uma mulher de uma só língua e essa era tão inacessível quanto a linguagem do vento soprando lá fora.” (p.54)

   Não é exagero afirmar que A disciplina do amor figura como uma obra singular, das mais importantes da carreira literária de Lygia. É através de A disciplina do amor que percebemos o quanto a linha que separa a ficção da realidade é tênue por mais que seja evidente a criatividade da autora em utilizar o verniz literário nos irregulares fragmentos que compõem essa coletânea. Não faltam fragmentos que abordam as leituras empreendidas pela autora e que tanto a comoveram, como atestam os textos sobre o poeta Álvares de Azevedo, pertencente “a escola de morrer cedo”, como também os textos que mostram a indignação perante algo mesquinho, como o sensacionalismo midiático em torno de tragédias como as enchentes, por exemplo, ou mesmo a apelação mostrada nos desfiles carnavalescos televisionados. Nada escapa à percepção certeira de Lygia sobre a vida, sobre nós.



Nenhum comentário:

Postar um comentário