domingo, 17 de julho de 2016

Comentando "A legião estrangeira",de Clarice Lispector

Edição de 1991:primorosos contos clariceanos
No livro de contos A legião estrangeira encontram-se alguns dos textos mais aclamados de Clarice Lispector.  A publicação desta obra data do ano de 1964, mesma época do lançamento do romance A paixão segundo G.H., motivo pelo qual, segundo apontam algumas pesquisas, A legião estrangeira teve menor repercussão nesse período, ou seja, devido o furor em torno de A paixão segundo G.H., livro considerado por muitos a sua obra-prima.
Nos textos de A legião estrangeira encontramos todos os elementos que norteiam a escritura clariceana, tais como as epifanias, por exemplo, e também é bem recorrente, quase como uma obsessão, a temática do “olhar”, o que podemos verificar no enigmático conto “O ovo e a galinha”, este, tido pela própria autora um enigma. Benedito Nunes, grande referência em assuntos clariceanos, considera “O ovo e a galinha” um exercício de meditação. No conto, a narradora tece inúmeras conjecturas existencialistas: “O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere.” (p. 47) Embora que eu esteja achando pêlo em ovo, absorvo desse texto o próprio enigma de viver; o medo do incerto futuro; a falta de autenticidade das relações humanas, esta devido ao que “vejo”, certa altura do conto a narradora-personagem diz: “ (...) ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto.” (p. 52). Entretanto, este é um texto que abarca inúmeras possibilidades de análise, uma vez que ao “ver” o ovo a personagem- narradora traz à narrativa a galinha, fazendo comparações entre ambos, nas quais a galinha é sempre inferiorizada: “ O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida.” (p. 48) arrisco-me a ligar pequenos fios soltos, valendo-me do fato de que em meados do século XX, época em que o conto foi escrito, a mulher não tinha emancipação, apenas o homem era o que podia mandar e desmandar, por isso, o ovo é análogo ao homem, como a galinha à mulher, pois embora o ovo seja o objeto de “meditação”, a narradora-personagem entende penosamente os sentimentos da galinha:  “Sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto,” etc. (p. 49) Não obstante, sabe até o que cacareja a galinha: “Etc., etc., etc.”

O ovo e a galinha é de uma grande estranheza, não? Pois bem, focando na palavra “estrangeira” vemos que ela também pode significar “estranho”, desconhecido, entre outras acepções. Os outros textos dessa coletânea trazem “situações” mais convencionais, por exemplo, “Macacos”,no qual uma dona de casa leva uma macaquinha para casa, para o maravilhamento de seus filhos; “Viagem a Petrópolis”, onde uma velhinha, “doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo.” (p. 57); “Uma amizade sincera”, no qual dois jovens amigos procuram avidamente comprovar sua amizade, embora bastava saber que eram amigos verdadeiros. Há também textos que evidenciam o carácter metalinguístico, por exemplo, “A quinta história”, onde a protagonista, a partir do mesmo começo, tece inúmeros desdobramentos para contar uma história: “verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (p. 74) Vale ressaltar que mesmo nesses referidos contos, sempre há um quê de estranhamento, em “Macacos”, após a mãe noticiar a morte da macaquinha Lisette, ela ouve do filho mais velho: “ Você parece tanto com Lisette!” em resposta: “Eu também gosto de você”. (p. 45). Vale lembrar que muitas das personagens que compõem essa “Legião estrangeira” são crianças, mas não se enganem que sejam crianças fofinhas e inocentes, no conto de abertura, por exemplo, a protagonista é uma aluna esperta e petulante e vive a pirraçar o professor. No entanto, o melhor exemplo de que as crianças não sejam tão inocentes está no conto que intitula a coletânea, sim, o conto “A legião estrangeira” é mais um texto clariceano que tira o leitor do prumo à medida que o olhar e a percepção apurada das personagens servem de espinha dorsal da narrativa. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário