Edição de 1991:primorosos contos clariceanos |
No
livro de contos A legião estrangeira encontram-se alguns dos textos mais aclamados
de Clarice Lispector. A publicação desta
obra data do ano de 1964, mesma época do lançamento do romance A paixão segundo
G.H., motivo pelo qual, segundo apontam algumas pesquisas, A legião estrangeira
teve menor repercussão nesse período, ou seja, devido o furor em
torno de A paixão segundo G.H., livro considerado por muitos a sua obra-prima.
Nos
textos de A legião estrangeira encontramos todos os elementos que norteiam a
escritura clariceana, tais como as epifanias, por exemplo, e também é bem
recorrente, quase como uma obsessão, a temática do “olhar”, o que podemos verificar
no enigmático conto “O ovo e a galinha”, este, tido pela própria autora um
enigma. Benedito Nunes, grande referência em assuntos clariceanos, considera “O
ovo e a galinha” um exercício de meditação. No conto, a narradora tece inúmeras
conjecturas existencialistas: “O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita?
Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere.” (p. 47) Embora que
eu esteja achando pêlo em ovo, absorvo desse texto o próprio enigma de viver; o
medo do incerto futuro; a falta de autenticidade das relações humanas, esta
devido ao que “vejo”, certa altura do conto a narradora-personagem diz: “ (...)
ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto.” (p.
52). Entretanto, este é um texto que abarca inúmeras possibilidades de análise,
uma vez que ao “ver” o ovo a personagem- narradora traz à narrativa a galinha, fazendo
comparações entre ambos, nas quais a galinha é sempre inferiorizada: “ O ovo é
o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida.”
(p. 48) arrisco-me a ligar pequenos fios soltos, valendo-me do fato de que em
meados do século XX, época em que o conto foi escrito, a mulher não tinha
emancipação, apenas o homem era o que podia mandar e desmandar, por isso, o ovo
é análogo ao homem, como a galinha à mulher, pois embora o ovo seja o objeto de
“meditação”, a narradora-personagem entende penosamente os sentimentos da
galinha: “Sei que o erro está em mim
mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto,” etc. (p. 49)
Não obstante, sabe até o que cacareja a galinha: “Etc., etc., etc.”
O
ovo e a galinha é de uma grande estranheza, não? Pois bem, focando na palavra “estrangeira”
vemos que ela também pode significar “estranho”, desconhecido, entre outras
acepções. Os outros textos dessa coletânea trazem “situações” mais convencionais,
por exemplo, “Macacos”,no qual uma dona de casa leva uma macaquinha para casa,
para o maravilhamento de seus filhos; “Viagem a Petrópolis”, onde uma velhinha,
“doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo.” (p. 57); “Uma
amizade sincera”, no qual dois jovens amigos procuram avidamente comprovar sua
amizade, embora bastava saber que eram amigos verdadeiros. Há também textos que
evidenciam o carácter metalinguístico, por exemplo, “A quinta história”, onde a
protagonista, a partir do mesmo começo, tece inúmeros desdobramentos para
contar uma história: “verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora
uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.” (p. 74) Vale
ressaltar que mesmo nesses referidos contos, sempre há um quê de estranhamento,
em “Macacos”, após a mãe noticiar a morte da macaquinha Lisette, ela ouve do
filho mais velho: “ Você parece tanto com Lisette!” em resposta: “Eu também
gosto de você”. (p. 45). Vale lembrar que muitas das personagens que compõem
essa “Legião estrangeira” são crianças, mas não se enganem que sejam crianças
fofinhas e inocentes, no conto de abertura, por exemplo, a protagonista é uma
aluna esperta e petulante e vive a pirraçar o professor. No entanto, o melhor
exemplo de que as crianças não sejam tão inocentes está no conto que intitula a
coletânea, sim, o conto “A legião estrangeira” é mais um texto clariceano que
tira o leitor do prumo à medida que o olhar e a percepção apurada das
personagens servem de espinha dorsal da narrativa.
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