domingo, 3 de julho de 2016

Comentando, "Onde estivestes de noite", de Clarice Lispector

Recente edição da Editora Rocco
Onde estivestes de noite é um livro de contos de Clarice Lispector publicado em 1974, ano de publicação do ousado e menosprezado A Via Crucis do corpo. Ambas as coletâneas possuem em comum o estilo mais simples e direto na construção das narrativas, bem como as temáticas do desejo sexual na velhice, dentre outros aspectos, como o reaproveitamento de textos publicados em outras obras, com alterações no título, por exemplo, método que sugeria a urgência que Clarice tinha em escrever para garantir sua sobrevivência. Seria isso uma “manigança”? Como a exemplo do texto “As maniganças de Dona Frosina”?
Um dos aspectos mais observados em Onde estivestes de noite é quanto a sua heterogeneidade: os dois primeiros contos lembram a estrutura dos aclamados contos de Laços de família e A legião estrangeira, diferem pelo agudo mergulho na temática da velhice, o desalento e anonimato aos quais são arrastadas as personagens Sra. Jorge B. Xavier no conto A procura de uma dignidade, que tinha desejos despudorados pelo cantor Roberto Carlos e Dona Maria Rita, no conto A partida do trem, esta, sentia-se um estorvo para sua família: “Sou como um embrulho que se entrega de mão em mão.” (p. 21) Além do fato de tais personagens serem descritas de modo abjeto, através de aspectos grotescos: a Sra Jorge. B. Xavier, num dado momento do conto, vê-se de quatro comparando-se a uma cadela; Dona Maria Rita possuía uma verruga no queixo de onde saía um pelo preto e espetado, ou mesmo quando sorria evidenciando sua “areada” dentadura. “O relatório da coisa” é um conto no estilo de “O ovo e a galinha” embora, com ritmo mais lento.
Onde estivestes de noite, o conto homônimo, é antecedido por quatro epígrafes, e o  que podemos esperar de um texto que se inicia com “A noite era uma possibilidade excepcional.”?  Sob a pena de Clarice Lispector, espera-se tudo. Menos a obviedade das coisas. Então, é sob uma atmosfera onírica que o leitor adentra nesse texto, no qual uma personagem andrógina, “Ele-ela” ou “Ela-ele” lidera uma subida à montanha onde coisas impensáveis acontecem, uma vez suspensa as regras do Dia, pois a noite abriam-lhes todas as possibilidades. “E não havia repressão: livres!” (p. 45) Essa liberdade aparece na aparente desestrutura do texto, ora a narrativa aborda as “maldições” ocorridas sob o comando de “Ele-ela” ou “Ela-ele”, ora são descritos personagens na luz do dia, com suas obrigações e sentimentos comuns. Aliás, nesse conto, onde prevalece a lógica do sonho, aparecem citações de Goethe, anúncios de rádio e até Cristovão Colombo dá o ar da graça!

Passada a vertigem, o susto ocasionado pela criatividade insana de Clarice em escrever textos tal o conto homônimo, os contos seguintes apontam uma calmaria, a busca pelo “estado de graça” ou mesmo, em alguns casos parecem mais crônicas, vide o texto “Uma tarde plena” ou mesmo “o morto no mar da Urca”, neste, a narradora- personagem recebe a notícia da morte de um homem por afogamento e faz um paralelo ao seu momento presente, em que estar a provar um vestido na costureira. Aliás, o que ocorre é que ao provar o vestido recebeu a trágica notícia, fato que modificou uma simples ida à Urca pra provar o vestido, pois a remeteu a reflexões sobre a morte. Este e todos os textos do volume, configuram a força que a literatura clariciana, feita nos últimos anos de sua vida possui. Podem ser escritos “na ponta dos dedos”, como relembra Vilma Arêas, porém longe de serem menos relevantes. Onde estivestes de noite é tão forte literatura, que alguns pesquisadores, leitores de Clarice, desvencilharam-se, do culto às obras aclamadas da autora, optando por pesquisarem sobre àquelas consideradas menores, Onde estivestes de noite, foi objeto de um primoroso estudo de Joel Rosa de Almeida, cuja pesquisa intitula-se: A experimentação do grotesco em Clarice lispector.

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