terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Geagá

Ela estava enfim de férias! Os últimos meses na loja de utilidades domésticas no Pari foram muito cansativos. Muito caroço até pra comprar “tapué”. Era assim mesmo que as clientes falavam. Ela também, quando começara a trabalhar naquele “paraíso do lar”. Gonçala não parava de pensar no recibo de férias: “período de gozo de 24 de dezembro a 25 de janeiro”. Era a felicidade de qualquer cidadão da classe F, de fudido. Como ela estava em êxtase... ia aproveitar as festas de final de ano e ganhar umas gramas. Só nessa época visitava seus parentes, estes, enevoados pelo espírito de confraternização, esqueciam as palavras ditas no decorrer do ano: “ela só procura a gente quando tá precisando”. “Mas com Gonçala, nunca se sabe... ela parece que vive num mundo a parte”. Até isso ela teve que ouvir.
Na sua mente ecoava o mantra: “período de gozo de 24 de dezembro a 25 de janeiro”. Ia lá gozar coisa nenhuma! O corpo que não lhe  venha com essas danações! Ia era purificar o espírito, focalizando suas energias apenas para o que realmente lhe proporcionasse avanço. Como ser humano mesmo. Ela que ultimamente andava à deriva de todos. Via as tragédias na TV e sequer mudava as expressões do rosto. Não era má, mas a vida se mostrava tão injusta que Gonçala ficara apática, muda. Como naquela música: “e não há razão que me governe... eu tou exatamente onde eu devia estar”. Não mais isso, tinha certeza que Pitty não era aquilo que entoava. Ia se reciclar. Era o tempo ideal. Mas por onde começar? Por um instante percebeu, que estava repetindo hábitos de quando estava de folga. O que acontece? Parou por segundos, olhou-se no espelho, concluiu: a casa está imunda! Como pôde se tranquilizar num lar apagado, sem sinal de polidez? É certo que tirava o pó dos móveis, utilizava uma imitação de Veja multiuso, etc, mas algumas teias de aranha saltavam-lhe à vista. E um amontoado de papeis, causara-lhe certo incômodo, tantas coisas, acabavam por lhe tirar seus traços pessoais. Tinha que começar.
O primeiro passo era pôr algo pra tocar, foi até o porta-CD e tomou um susto com a quantidade de discos. Qual escolher? Spice Girls lhe remontaria a infância e também ela se empolgaria na sua imensa tendência à distração. Rodopiaria a casa inteira, porque lhe baixaria a Mel B., sua preferida. “tempere a sua vida” era o refrão chiclete. Não, fizesse isso e quando terminaria a faxina? Olhou o do Ney, mas  a voz dele dilacerava sua alma. Se é que ainda tinha uma... acabou escolhendo Ray of light, da Madonna, o seu ideal de ser humano. Ideal inatingível, diga-se de passagem, um amor platônico. Nunca que alguém nas condições precárias de Gonçala, em sua pequenez existencial, iria alcançar até os próximos mil anos, a condição elevada de Madonna. Never! Mas se esse era seu karma, o que se há de fazer? Tinha era que restaurar a clareza de sua casa, começando pelo seu quarto, um antro de papéis sem nenhuma utilidade. Com exceção dos livros, claro. Mesmo sendo comprados num sebo, eram o seu maior tesouro. Da estante voaram cartões de natal, fotos de ex-namorados, contas de séculos atrás, atestados médicos... por que amontoara tudo isso? Dinheiro? Uma peça de porcelana chinesa servia de cofrinho para as moedas, era seu consolo, pensou: como sou lascada! E já estou com 35 anos e essa vida de parcos recursos... todas, as suas amigas tinham casa própria e carro na garagem. Não, melhor seria não pensar e prosseguir limpando. Afinal, ela não era a G.H., não podia se dar ao luxo de viajar pra dentro de sí. Até porque, ao contrário daquela, seu quarto precisava mesmo da faxina. E Gonçala não tinha muito em que pensar de sí, além de sua pobreza extrema. Quem era Gonçala na fila do pão? A resposta era: um quarto, uma cozinha e um banheiro para deixar brilhando. Não era porque morava numa quitinete do Cambuci, que era obrigada a se consumir na poeira. Trabalha porra! Era assim que baixaria-lhe a Neide e aconteceria a precisada faxina.


Só parava poucas vezes pra bebericar um café e fumar um cigarro, Minister. Lembrou-se, da colega da loja que advertira: “tú trabalha aqui no Pari, remediada que é, e fuma esse cigarro de pedreiro? Já imaginou estando na balada e alguém te pede um cigarro e tú disponibiliza um cigarro de quinta?” Gonçala perdera a linha, óbvio. Mandou um, vá se fuder que ela fuma o cigarro que ela quiser... ela não conhecia essas coisas de sutileza. Mas, enfim, a faxina pesada era o primeiro passo para se livrar não só do amontoado de inutilidades e poeira. Como sabe-se, ela não iria gozar de prazeres carnais ou momentos frívolos após o natal e a virada. Iria passar seu “projeto de vida” a limpo até chegar num estado de “tem de ser por aqui que irei”. Ao chegar à cozinha, areou as panelas, limpou toda a geladeira que só tinha Pepsi, deixou o fogão um brinco e lavou o banheiro. Chegara ao fim a faxina. Estando só pó da rabiola, seja lá oque significa rabiola, foi enfim tomar seu banho. Olhou-se, nua no espelho: era outra. Pálida, pensou: “ quando irei à Praia Grande?”

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