Edição mais recente da coletânea |
Quando
se fala em Clarice Lispector, as primeiras obras que nos vem à cabeça são: A
Paixão segundo G.H. e A hora da estrela. Há também as citações atribuídas a ela
nas redes sociais, além das várias maneiras de enquadrarem, rotularem sua
literatura, ou seja, a fortuna crítica é imensa, uma vez que, sua obra abrange
tantos questionamentos, tanto no que diz respeito aos temas, quanto ao formato
em que são construídas as narrativas. No entanto, ouso apontar um aspecto de
sua prosa pouco explorado: a temática homossexual. Sim, no livro de contos A
via crucis do corpo, Clarice Lispector não só flerta com o tema, mas descamba
abertamente para o que se pode denominar “literatura gay”.
Redundante
lembrar que Clarice Lispector, quando se é “ela mesma” é aquela escritora
voltada para questões metafísicas, espirituais,etc e justamente A via crucis do
corpo é o contraponto disso. Escrito por encomenda, numa época em que a autora
passava por dificuldades financeiras em 1974. Ao seu lançamento? Um desastre! Críticos
literários, acostumados com a Clarice que priorizava a sondagem psicológica das
personagens, não engoliram uma obra que abordava personagens com atitudes “grotescas”,
por exemplo: senhoras octogenárias com desejos sexuais, mulheres e gays
disputando o mesmo homem, moças seduzidas por extra-terrestres, etc. Especificamente em dois contos, o enredo gira em
torno de personagens homossexuais: “Ele me bebeu” e Praça Mauá, mas já no
segundo conto do volume há o flerte pela temática, em “O corpo” somos
apresentados a um triângulo amoroso composto por um homem e suas duas mulheres,
sendo que “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de
não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.”
(p. 23)
A
aderência a temas que retratam de alguma forma o universo homoafetivo é
estruturada por meio de uma linguagem direta, Clarice vai direto ao ponto, ou
seja, apresenta as personagens em seus aspectos corporais “grotescos” pelo modo
como estes são reforçados e também lança mão de um jogo de “mostra-esconde” dai
temos em “Ele me bebeu” Aurélia Nascimento ostentando uma beleza (máscara) que
na verdade esconde sua “vazia” personalidade; Serjoca, que era maquilador de
mulheres. “Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.” (p. 41) Ambos são
amigos e ficam interessados pelo mesmo homem. À medida que Aurélia é maquilada
por Serjoca, essa sente como se aquele estivesse “tirando o rosto”. “A
impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne.
Carne morena.” (p.43) Serjoca, apresenta-se com naturalidade, com sua falta de maneira com os
talheres e também, como uma personagem determinada, que sabe a hora de agir, o
que explica o silêncio inicial ao conhecer Afonso, o rico industrial, para só
passado as apresentações, depois “falar que não acabava mais”, Serjoca “lançava
olhos lânguidos para o industrial”. (p.43). Desnecessário revelar que Aurélia
fora preterida pelo industrial, o mais importante é o desfecho que reservara
pra ela o resgate de sua identidade, sem maquilagem ou adereços que complementem
os seus atributos.
Bem
mais contundente que “Ele me bebeu” é o conto “Praça Mauá”. Novamente, tematiza
a rivalidade entre uma mulher e um homossexual, porém as questões de gêneros são
mais problematizadas. Com muito humor, claro! Períodos curtos, discurso
paródico, estamos diante de um dos trabalhos mais híbridos de Clarice: a
coletânea de contos e crônicas A via crucis do corpo. Bem, Praça Mauá apresenta
personagens em perfis “enganadores”: Luísa, uma dona de casa, totalmente alheia
aos cuidados com o lar, que transformava-se em Carla, dançarina de cabaré.
Esta, era amiga de Celcinho, que era de família nobre ,mas na verdade
assumira-se em Moleirão, travesti de sucesso do cabaré onde Luísa/ Carla
trabalhava. A questão do feminino, do papel da mulher na sociedade é
problematizada nesse formidável conto: Luísa não desempenhava tarefas do lar,
realizava-se no cabaré Erótica, já Moleirão/Celcinho, trabalhava no Erótica,
mas desempenhava tarefas domésticas com êxito. Tanto que adotara uma
meninazinha de quatro anos. “Era-lhe uma verdadeira mãe. Dormia pouco para
cuidar da menina. A esta não faltava nada: tinha tudo do bom e do melhor. E uma
babá portuguesa.” (p.63) Mesmo, com essa inversão de papéis, fica evidente na narrativa,
o quanto a mulher precisava evoluir na esfera social. Ser mulher, na figura de
Celcinho/Moleirão era desempenhar o papel de mãe e dona de casa. Até mesmo pra sua
filha adotiva “Celcinho queria para Claretinha um futuro brilhante: casamento
com homem de fortuna, filhos, joias.” (p.63) Esse embate entre “ser” mulher ou
apenas “parecer” chega ao clímax quando Carla é chamada para dançar por “um
homem alto e de ombros largos”. Este também deixou Celcinho atraído, ele “roeu-se
de inveja”. “Era vingativo.” Carla, lançou a deixa:
-
É tão bom dançar com um homem de verdade.
Celcinho
pulou:
-Mas
você não é mulher de verdade!
(...)
-Você,
vociferou Celcinho, não é mulher coisa alguma! Nem ao menos sabe estalar um ovo!
E eu sei! Eu sei! Eu sei!
Celcinho
atingiu o ponto fraco de Luísa/Carla, deixou-a desnorteada, fazendo-a se sentir
como “a mais vagabunda das prostitutas”. Segundo a narradora do conto, Celcinho
era mesmo mais mulher que Carla. Ressalto que esse não é necessariamente o
desfecho da narrativa, este, fica em aberto. Não devemos esquecer que trata-se
da pena de Clarice Lispector e nada é tão simples como parece ser. Bem, esqueci
de relatar detalhes importantes, como o que Celcinho, era adorado pelos marinheiros
da praça Mauá, mas fazia carão. “Só cedia em última instância”. E também que
este, era econômico, pois “tinha muito medo de envelhecer e ficar ao desamparo.
E mesmo porque travesti velho era uma tristeza.” (p. 62)
Incomoda-me
que poucos conheçam essa maravilhosa obra, “A via crucis do corpo”, nunca um
módico volume de contos e crônicas me proporcionaram momentos de alegria,
reflexão, tristeza, etc, como essa coletânea onde o belo e o feio, o frívolo e
o permanente duelam o mesmo corpo textual, os impulsos da carne que refletem na
alma. E claro, sem falar nas personagens homossexuais, com personalidade pra
dar e vender. Como disse-me um amigo: “as bibas da Clarice são terríveis!”
Excelente resenha desta obra divertida e ao mesmo tempo tão fiel ao universo clariceano. Textos como este ajudam a dar visibilidade a um livro pouco explorado pelos especialistas.
ResponderExcluirOi Eduardo, eu gostaria de entrar em contato contigo. Tem um endereço de email?
ResponderExcluirAbs
Clarice Lispector inspira em mim um lado grotesco de sensibilidade
ResponderExcluirSim! Em mim também. Me cobro a leitura de outros escritores, mas acabo relendo as de Clarice, tanto os textos herméticos, quanto esses simples e grotescos do Via Crucis, meu livro favorito. Abçs.
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