domingo, 20 de dezembro de 2015

Clarice Lispector e a temática homossexual

Edição mais recente da coletânea 
Quando se fala em Clarice Lispector, as primeiras obras que nos vem à cabeça são: A Paixão segundo G.H. e A hora da estrela. Há também as citações atribuídas a ela nas redes sociais, além das várias maneiras de enquadrarem, rotularem sua literatura, ou seja, a fortuna crítica é imensa, uma vez que, sua obra abrange tantos questionamentos, tanto no que diz respeito aos temas, quanto ao formato em que são construídas as narrativas. No entanto, ouso apontar um aspecto de sua prosa pouco explorado: a temática homossexual. Sim, no livro de contos A via crucis do corpo, Clarice Lispector não só flerta com o tema, mas descamba abertamente para o que se pode denominar “literatura gay”.
Redundante lembrar que Clarice Lispector, quando se é “ela mesma” é aquela escritora voltada para questões metafísicas, espirituais,etc e justamente A via crucis do corpo é o contraponto disso. Escrito por encomenda, numa época em que a autora passava por dificuldades financeiras em 1974. Ao seu lançamento? Um desastre! Críticos literários, acostumados com a Clarice que priorizava a sondagem psicológica das personagens, não engoliram uma obra que abordava personagens com atitudes “grotescas”, por exemplo: senhoras octogenárias com desejos sexuais, mulheres e gays disputando o mesmo homem, moças seduzidas por extra-terrestres,  etc. Especificamente em dois contos, o enredo gira em torno de personagens homossexuais: “Ele me bebeu” e Praça Mauá, mas já no segundo conto do volume há o flerte pela temática, em “O corpo” somos apresentados a um triângulo amoroso composto por um homem e suas duas mulheres, sendo que “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.” (p. 23)  
A aderência a temas que retratam de alguma forma o universo homoafetivo é estruturada por meio de uma linguagem direta, Clarice vai direto ao ponto, ou seja, apresenta as personagens em seus aspectos corporais “grotescos” pelo modo como estes são reforçados e também lança mão de um jogo de “mostra-esconde” dai temos em “Ele me bebeu” Aurélia Nascimento ostentando uma beleza (máscara) que na verdade esconde sua “vazia” personalidade; Serjoca, que era maquilador de mulheres. “Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.” (p. 41) Ambos são amigos e ficam interessados pelo mesmo homem. À medida que Aurélia é maquilada por Serjoca, essa sente como se aquele estivesse “tirando o rosto”. “A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.” (p.43) Serjoca, apresenta-se com  naturalidade, com sua falta de maneira com os talheres e também, como uma personagem determinada, que sabe a hora de agir, o que explica o silêncio inicial ao conhecer Afonso, o rico industrial, para só passado as apresentações, depois “falar que não acabava mais”, Serjoca “lançava olhos lânguidos para o industrial”. (p.43). Desnecessário revelar que Aurélia fora preterida pelo industrial, o mais importante é o desfecho que reservara pra ela o resgate de sua identidade, sem maquilagem ou adereços que complementem os seus  atributos.
Bem mais contundente que “Ele me bebeu” é o conto “Praça Mauá”. Novamente, tematiza a rivalidade entre uma mulher e um homossexual, porém as questões de gêneros são mais problematizadas. Com muito humor, claro! Períodos curtos, discurso paródico, estamos diante de um dos trabalhos mais híbridos de Clarice: a coletânea de contos e crônicas A via crucis do corpo. Bem, Praça Mauá apresenta personagens em perfis “enganadores”: Luísa, uma dona de casa, totalmente alheia aos cuidados com o lar, que transformava-se em Carla, dançarina de cabaré. Esta, era amiga de Celcinho, que era de família nobre ,mas na verdade assumira-se em Moleirão, travesti de sucesso do cabaré onde Luísa/ Carla trabalhava. A questão do feminino, do papel da mulher na sociedade é problematizada nesse formidável conto: Luísa não desempenhava tarefas do lar, realizava-se no cabaré Erótica, já Moleirão/Celcinho, trabalhava no Erótica, mas desempenhava tarefas domésticas com êxito. Tanto que adotara uma meninazinha de quatro anos. “Era-lhe uma verdadeira mãe. Dormia pouco para cuidar da menina. A esta não faltava nada: tinha tudo do bom e do melhor. E uma babá portuguesa.” (p.63) Mesmo, com essa inversão de papéis, fica evidente na narrativa, o quanto a mulher precisava evoluir na esfera social. Ser mulher, na figura de Celcinho/Moleirão era desempenhar o papel de mãe e dona de casa. Até mesmo pra sua filha adotiva “Celcinho queria para Claretinha um futuro brilhante: casamento com homem de fortuna, filhos, joias.” (p.63) Esse embate entre “ser” mulher ou apenas “parecer” chega ao clímax quando Carla é chamada para dançar por “um homem alto e de ombros largos”. Este também deixou Celcinho atraído, ele “roeu-se de inveja”. “Era vingativo.” Carla, lançou a deixa:
- É tão bom dançar com um homem de verdade.
Celcinho pulou:
-Mas você não é mulher de verdade!
(...)
-Você, vociferou Celcinho, não é mulher coisa alguma! Nem ao menos sabe estalar um ovo! E eu sei! Eu sei! Eu sei!
Celcinho atingiu o ponto fraco de Luísa/Carla, deixou-a desnorteada, fazendo-a se sentir como “a mais vagabunda das prostitutas”. Segundo a narradora do conto, Celcinho era mesmo mais mulher que Carla. Ressalto que esse não é necessariamente o desfecho da narrativa, este, fica em aberto. Não devemos esquecer que trata-se da pena de Clarice Lispector e nada é tão simples como parece ser. Bem, esqueci de relatar detalhes importantes, como o que Celcinho, era adorado pelos marinheiros da praça Mauá, mas  fazia carão. “Só cedia em última instância”. E também que este, era econômico, pois “tinha muito medo de envelhecer e ficar ao desamparo. E mesmo porque travesti velho era uma tristeza.” (p. 62)
Incomoda-me que poucos conheçam essa maravilhosa obra, “A via crucis do corpo”, nunca um módico volume de contos e crônicas me proporcionaram momentos de alegria, reflexão, tristeza, etc, como essa coletânea onde o belo e o feio, o frívolo e o permanente duelam o mesmo corpo textual, os impulsos da carne que refletem na alma. E claro, sem falar nas personagens homossexuais, com personalidade pra dar e vender. Como disse-me um amigo: “as bibas da Clarice são terríveis!”


4 comentários:

  1. Excelente resenha desta obra divertida e ao mesmo tempo tão fiel ao universo clariceano. Textos como este ajudam a dar visibilidade a um livro pouco explorado pelos especialistas.

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  2. Oi Eduardo, eu gostaria de entrar em contato contigo. Tem um endereço de email?

    Abs

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  3. Clarice Lispector inspira em mim um lado grotesco de sensibilidade

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  4. Sim! Em mim também. Me cobro a leitura de outros escritores, mas acabo relendo as de Clarice, tanto os textos herméticos, quanto esses simples e grotescos do Via Crucis, meu livro favorito. Abçs.

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