Antiga edição do segundo romance clariceano |
O Lustre é o segundo romance de Clarice
Lispector. Assim como Perto do coração selvagem, seu romance de estreia, O
lustre também consiste na sondagem psicológica de uma personagem feminina.
Acompanhamos o denso e introspectivo universo de Virgínia, personagem esta, que
nos remete à gênese de Macabéa, no que
tange a inadequação à vida em sociedade, entretanto em doses muito diferentes,
a grandeza interior da primeira, até porque aqui Clarice dispõe do “contorno
largo do romance” torna Virgínia uma personagem mais fascinante que a inocente
Macabéa.
Narrado em terceira pessoa, O Lustre simula uma
linearidade, mero exercício narrativo, uma vez que é pretendido demarcar uma
trajetória já fadada ao caótico fim. As primeiras páginas desse romance
reportam a infância de Virgínia, cujo elo mais próximo é o de seu irmão Daniel,
a quem ela destina uma cega obediência. Daniel, trata Virgínia como sua serva
por considerá-la tola e medíocre, esta vê em Daniel um ser corajoso e “difícil
de se amar”, como observou Benedito Nunes, e os outros familiares, o pai ,a mãe
e a irmã Esmeralda não são para ela vistos com atitudes admiráveis. O pai, um
senhor autoritário; a mãe, de uma submissão ao marido e ao lar, como era a
condição feminina da primeira metade do século XX, e Esmeralda a repetir a sina
da mãe. Todavia, Virgínia segue com suas errãncias, sob o comando de Daniel,
como o episódio em que contou ao pai dos encontros de Esmeralda com um rapaz no
jardim. Um abalo à harmonia da família, e demonstrando que era “sabida”, fingiu
um desmaio fugindo assim da ira de Esmeralda e da mãe.
As ricas passagens das infância de Virgínia e Daniel,
carregadas de impressões que o locus, Brejo Alto, provoca na personagem
feminina expõem toda uma atmosfera sombria, até porque lançando mão de um
trocadilho, Daniel institui uma Sociedade das Sombras, entidade esta, que dita
as regras a serem cumpridas por ele e Virgínia, e em nome dessa entidade ele,
ordena a Virgínia que fique por horas no porão para aprender a pensar. No
entanto Virgínia, apenas restringe-se a olhar (meditar) sobre os objetos
empoeirados do porão e agradecendo por Daniel não ter ordenado que vá pensar na
floresta à noite.
Passado a fase infantil, Virgínia e Daniel rumam
à cidade, todavia seguem destinos diferentes, ele casa, ela segue errando sem
conseguir manter vínculos efetivos com outras pessoas. Começa uma amizade com um
porteiro, no entanto este, é casado e em suas visitas à Virgínia, tenta doutrina-la
por meio de uma difícil leitura da Bíblia. Nesse mesmo episódio, a narradora
denota uma das errâncias de Virgínia, pelo simples ato de que, esta ao preparar
um jantar para ela e o porteiro esquecera de comprar guardanapos. Embora, o que
configura o patético na relação entre os dois, é que este não compreende a
inadequação de Virgínia aos modelos pré-estabelecidos, ou seja, para ele, o ato
de Virgínia recebê-lo em sua casa é uma atitude de mulheres de conduta duvidosa.
Ele, com o dever de zelar sua posição de homem casado, ao sustentar uma Bíblia
combatia sua própria mente pecaminosa.
Ao leitor, é quase impossível não nutrir piedade
por Virgínia, personagem retratada de modo tão destoante das atitudes
convencionais aos outros seres humanos. Até as crianças se acham mais espertas
que ela, como na parte em que Virgínia é intimada a devolver uma bola a um
grupo que jogava. Ela, absorta, perdida e as crianças a interrogá-la, pois
estas estão presas ao tempo presente, na interação com outras suas e assim “vivendo”
uma infância plena, observando e integrando -se com as pessoas e suas regras
padronizadas,sem margens para devaneios e opressões de quem se julgue superior.
Por isso, as crianças desvendaram facilmente a penúria de Virgínia, de modo que
esta ao tentar retrucá-las, expunha cada vez mais seu ser desintegrado,
inocente a caminho de seu fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário