domingo, 26 de fevereiro de 2017

Comentando o livro Escolha o seu sonho, de Cecília Meireles

Edição de 1996
   Muitos conhecem Cecília Meireles através dos célebres poemas, mesmo os que não se aprofundaram na obra da autora, certamente recordam-se de “Motivo” ou “Retrato”, entretanto, a poeta foi uma cronista de mão cheia! A coletânea “Escolha o seu sonho” é a prova do seu talento de poeta-cronista, ou seria o inverso? Os elementos que servem de tema a sua poesia aqui reverberam de forma mais simples, como é de se esperar de um gênero que prima pela leveza e pela descrição de fatos do cotidiano absorvidos pelo olhar perspicaz do cronista.
As crônicas de Escolha o seu sonho abarcam desde lembranças da infância ao descontentamento frente à nova arquitetura da cidade do Rio de Janeiro (Casas amáveis). Na verdade, o descontentamento da cronista-poeta refere-se ao rumo que a sociedade ia tomando, como relata em tom de perplexidade um perfil das gentes que beira ao individualismo, acarretando uma falta de fé na sociedade, como atesta a frase inicial da crônica “Tempo incerto”: “Os homens tem complicado tanto o mecanismo da vida que já ninguém tem certeza de nada”.  Já no texto “Casas amáveis”, percebemos a falta de autenticidade provocada pela construção dos novos prédios: “Afinal, tudo são arranha-céus." (Ninguém mais quer ser como é: todos querem ser como os outros são.) A indignação chega a tal ponto que Cecília desenha, põe entre parênteses! Nessa crônica, além de descrever as aconchegantes casas de antigamente, Cecília também expõe a visível falta de nacionalismo que o novo perfil arquitetônico adquire: “cujas risonhas proprietárias tem sempre um Y no nome, Yara, Nancy, Jeny...” O modo como a cronista enumera as qualidades das “Casas amáveis” que tinham “... esse ar humano, esse modo comunicativo, essa expressão de gentileza...” evocam a sua inerente poeticidade, ou seja, assim como os poemas de Cecília são carregados de efeitos sinestésicos nessa crônica há reverberações desse aspecto tão peculiar da escritora.
Além da angústia perante o caótico futuro que a selvageria de uma cidade a crescer desenfreadamente provocaria (Tempo incerto), a poeta-cronista também dar espaço para que outros artistas sirvam de tema de suas crônicas, como em “Portinari, o trabalhador”, onde enumera o intenso labor pelo qual viveu e ironicamente morreu Cândido Portinari. Em O “Divino Bachô”, ela nos apresenta a um poeta japonês, Bachô, sobretudo nos introduz ao hai-kai e ainda nos ilumina para o entendimento dessa composição poética, pois, “É um engano tomá-lo apenas pelo aspecto superficial: precisa-se penetrar na intimidade da sua significação”. Essa receita é a mesma que precisamos dispor para entender sua branda e envolvente poesia. Entretanto, se os poemas de Cecília não tocarem o leitor numa primeira conferida, o mesmo não poderá se dizer de suas crônicas que conquistam-nos logo nas primeiras linhas. Vale ressaltar que as crônicas deste volume passeiam por vários estados d'alma da poeta-cronista, pois acabei citando excepcionalmente os textos que demonstram indignação por algo. O leitor será presenteado com uma obra que o levará dos risos às lágrimas, isso é fato. Há vários textos em que Cecília permite-se rir de algo inusitado ou patético mesmo, a crônica "Mundo engraçado" onde a cronista discorre sobre tipos como "o mentiroso" e o "posudo", ou seja, aquele que ostenta algo em tom de solenidade; algo como os "posers" ou "fakes" dos nossos dias. E, claro, há os textos que revelam a canônica escritora que conhecemos: sublime; branda; profunda.

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