Edição da Editora Rocco da coletânea |
A
Bela e a fera é um pequeno volume de contos de Clarice Lispector. Nessa obra
encontramos contos escritos antes de sua grande estreia com o romance Perto do coração
selvagem, sendo que a estes contos, somam-se mais dois escritos em 1977: Um dia
a menos e A bela e fera ou A ferida grande demais. Trata-se de uma coletânea
que apresenta a Clarice “espiritual”, aquela que escreve densos e belos textos,
e também a escritora mais resoluta, despudorada, que escreve “com aponta dos
dedos” segundo os apontamentos de Vilma Arêas.
Como exemplo de texto pertencente a grande
literatura clariceana podemos citar
“Gertrudes pede um conselho”, neste conto acompanhamos a trajetória de uma
adolescente em busca de uma vida mais significativa, na qual ela fosse mais
compreendida ou realizada, apesar da pouca idade para grandes pretensões. O que
atordoava Gertrudes (apelidada de Tuda) era a banalidade do cotidiano, a qual
sua família simplesmente integrava-se sem questionamentos ao passo que ela
esperava por grandes acontecimentos. Era uma personagem ávida pelo
extraordinário, curiosa, que não aceitava ir vivendo sem questionar a razão, as
crenças, Deus, etc. Numa esperança de aplacar suas grandes dúvidas, Tuda
escreve cartas a uma espécie de conselheira de revistas, chegando, inclusive, a
ser chamada para conversar no escritório da conselheira, doravante a narradora
ora adere às perspectivas de Tuda, ora da conselheira. Por vezes temos a
impressão que está havendo um duelo entre ambas, pois Tuda embora seja a
paciente, é uma moça esperta, ou perspicaz, como a doutora percebera. Foi uma
frustração para Tuda o encontro com a conselheira, pois simplesmente: “Ela era
igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!”(p.24)Como Tuda sairá
dessa? A leitura do conto na íntegra assim como do livro toda irá surpreender!
Já como exemplo de texto escrito “com a ponta
dos dedos”, podemos citar “Um dia a menos”, um dos últimos textos que Clarice
escreveu, cujo manuscrito fora organizado pela amiga Olga Boreli. No conto
temos uma narradora-personagem que já inicia questionando sobre a morte: “Eu
desconfio que a morte vem. Morte?”(p.89) Clarice é especialista em criar
personagens femininas que vivem em busca de algo maior, sublime, e a solidão é
uma eficaz maneira de se alcançar uma compreensão de si e da vida mesmo.
Entretanto, nos contos de 1974 em diante, Clarice deixava transparecer certa
impaciência, o que resultava em personagens cômicas ou mesmo bizarras.
Margarida Flores, a narradora desse conto relata sobre o infame apelido de
infância: “Margarida Flores de Enterro”; sobre sua solidão insuportável, uma
vez que sua empregada passaria o mês de férias e ela esquecia-se dos modos de
organização da casa. Havia a espera que o telefone tocasse, ela era uma mulher
sozinha de trinta anos. Todavia, após várias tentativas de preencher as horas,
o telefone toca e Margarida tem a possibilidade de dividir com alguém os seus
pensamentos, o que ela fizera de si. Essa situação, ou seja, a conversa ao
telefone, é uma cena cômica onde a narradora conversa educadamente até ir as
raias da impaciência e desligar “o aparelho” como dizia sua interlocutora que
era uma idosa procurando alguém que Margarida Flores sequer sabia da
existência-era praticamente um trote.
O conto que encerra a coletânea, é o texto
que intitula esse volume: A bela e a fera ou A ferida grande demais,um texto
onde Clarice aborda a questão social, especificamente a temática das diferenças
de classe,no qual temos a narradora-personagem representando a classe alta e um
mendigo com uma ferida enorme na perna como pertencente a classe dos
marginalizados.O encontro de Carla de Souza e Santos com o mendigo
provocara-lhe um abalo em sua rotina de mulher rica e elegante, situação
parecida a da personagem de outro texto de Clarice: Perdoando Deus, onde sua
personagem estava a contemplar e agradecer pela vida e de repente aparece-lhe a
feiura do mundo personificada em um rato morto. Ambos os textos são esplêndidos
pelo fato de Clarice extrapolar as fronteiras do maniqueísmo, aliás, nestes
contos Clarice expõe um certo grau de empatia com as coisas que estão do nosso
lado e, por convenção ou egoísmo tendemos a ignorar. Como a exemplo de sua
personagem rica e elegante que após tormentos e reflexões chegou ao mesmo nível
do mendigo da ferida grande, Concluímos com a constatação de Carla:
“_
Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas
mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que
me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...”
(p.108)
Edu, Clarice somos nós! Estou com saudades de sua alma transparente. Bjs, sucesso nas batalhas da vida.
ResponderExcluirObrigado, Sr. Estapafombio! Bem observado, Clarice somos nós mesmos. Temos outras boas escritoras, como a lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz, etc, mas é difícil ficar muito tempo sem ler algo de Clarice. Abçs!! Sucesso pra vc tbm.
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